Presente na seção “episteme & epiderme” da obra em referência, as linhas deste poema apreendem a condição do corpo – no caso, do corpo feminino –, depois de anos de espera e de fuga, de feridas mentais ou físicas, de desejos cumpridos e não realizados, o coração sequestrado pelo silêncio. Por cima dele, o sobretudo.
O embate contra o ruído do quotidiano, os azos de desencontro e de abandono, as asperezas e os contratempos enfrentados, mal o corpo suporta sob o agasalho – logo aquilo que se reveste, à primeira vista, de importância e relevo na vida de cada um de nós, cicatrizes que o tempo não apaga e que nos molda a identidade.
J.A.R. – H.C.
Ana Martins Marques
(n. 1977)
Sobretudo
Educado pelo trabalho dos anos
o corpo aprende as posições da espera e da fuga,
do desencontro e do abandono.
E ao umbigo – essa primeira cicatriz –
virão juntar-se
outras feridas, mudas e intratáveis.
Cada corpo tem sua história de desejos,
seu volume lentamente forjado
no embate com os ruídos do dia.
O coração
como uma ave transpassada
pela seta do silêncio.
A vida secreta das vísceras.
E a coluna como uma estante para suportar
o peso de tudo.
Mas nós mal suportamos o sobretudo.
Mulher em sobretudo
vermelho com sombrinha
(Andre Kohn: artista russo)
Referência:
MARQUES, Ana Martins. Sobretudo. In:
__________. A vida submarina. 1. ed. 1. reimp. Belo Horizonte, MG:
Scriptum, 2009. p. 82.
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