Mais inusitado do que o tributo à beleza, o culto à fealdade tem os seus entusiastas, por outros contestados de algum modo, como Goldberg, que associa a feiura a Lúcifer – ele que, com tanta proeminência, aparece sobranceiramente no “Paraíso Perdido”, de John Milton (1608-1674) –, efígie da divina criação, cujos rastros são pródigos em moléstias, deformidades, degradações da matéria.
“Feio é a beleza no anverso da ribalta”, diz-nos Goldberg. E dessa concepção do feio por contraposição ao belo, emerge a morte como o seu natural corolário: as imagens lôbregas dos derradeiros versos do poema associam-se, s.m.j., às páginas mais soturnas de Poe, idem em relação à toada “Luar do Sertão”, de Catulo da Paixão Cearense.
J.A.R. – H.C.
Jacob Pinheiro Goldberg
(n. 1933)
Culto à Fealdade
O anjo da luz comprometeu a escala da criação
estética.
Lúcifer, beleza provável.
Na desarmonia, falsa de estrutura, reside a
passagem para a morte,
ruptura na cósmica de servidão.
O pacto da feiura alimenta o único enredo divino.
A criança enferma cancerosa, o aidético, o louco
deformado,
a sujeira, as rugas da velhice, enfim a posse da serventia.
Significante, na poesia estelar-ribombante na
proporção do anão.
Orai por nós, feios, no altar de nossa vida, agora
e na hora de
nossa morte, aleluia, também.
O avesso, prosaico, coloquial, feio é a beleza no
anverso da ribalta.
Enterrai, cadáveres a caricatura da beleza,
injunção narcísica
do usurpador.
A messiânica mentira não é passado, virá nas dobras
de um pardal
enluarado.
Não há, então, cantata no sertão, sombras no sótão,
porão.
Em: “Ritual de Clivagem” (1989)
Amantes mal combinados
(Quentin Massys: pintor flamengo)
Referência:
GOLDBERG, Jacob Pinheiro. Culto à
fealdade. In: __________. Poemas-vida: antologia de Jacob Pinheiro
Goldberg. Organização e apresentação de Marília Librandi Rocha. Rio de Janeiro,
RJ: 7Letras, 2008. p. 43.
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