Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Margaret Atwood - Solipsismo ao morrer

À beira de uma especulativa morte, a poetisa – ou uma voz lírica que lhe faça as vezes − põe-se a refletir sobre o mundo ao redor, melhor dizendo, acerca de seu país de adoção – o Canadá −, internalizando as imagens de que fora, então, capaz de evocar, para melhor compreender-lhe a essência – Toronto em especial (embora tenha nascido em Ottawa).

Veja-se que a voz lírica ainda está bastante apegada às coisas terrenas, haja vista que preocupada com o que há de suceder com tudo quanto, em termos tangíveis, gira à sua volta: seu mundo e seus parentes poderão existir depois que ela se for?: claro está que o que se extinguirá são apenas o seu corpo e as suas percepções, deveras efêmeras quanto qualquer outra visão de mundo construída socialmente!

J.A.R. – H.C.

Margaret Atwood
(n. 1939)

 

Solipsism while dying

 

the skeleton produces flesh

 

enemy

opposing, then taken

for granted, earth harvested, used

up, walked over

 

the ears produce sounds

 

what I heard what I

created. (voices

determining, repeating

histories, worn customs

 

the mouth produces words

 

I said I created

myself, and these

frames, commas, calendars,

that enclose me

 

the hands produce objects

 

the world touched

into existence: was

this cup, this village here

before my fingers

 

the eyes produce light

 

the sky

leaps at me: let there be

the sun-

set

 

Or so I thought, lying in the bed

being regretted

 

added: What will they do now

that I, that all

depending on me disappears?

 

Where will be Belleville?

 

Kingston?

 

(the fields

I held between, the lake

boats

 

t o r o N  T   O

 

A morte de Marat

(Jacques-Louis David: pintor francês)

 

Solipsismo ao morrer

 

o esqueleto produz carne

 

inimiga

a se lhe opor, logo

transigida, terra segada, exaurida,

espezinhada

 

os ouvidos produzem sons

 

por mim escutados e

criados. (vozes

determinantes, histórias que se

repetem, rotos costumes

 

a boca produz palavras

 

ditas por mim e por mim mesma

criadas, e estas

molduras, vírgulas, calendários

que me rodeiam

 

as mãos produzem objetos

 

orientados pelo mundo

à existência: assim surgiram

esta taça, esta aldeia aqui

diante de meus dedos

 

os olhos produzem a luz

 

que o céu

lança sobre mim: que venha

o pôr do

sol

 

Algo assim eu pensei, estirada no leito,

sendo pranteada

 

e acresci: O que se há de fazer agora

que eu, e tudo de quanto de mim

dependa, desaparece?

 

Onde estará Belleville?

 

E Kingston.

 

(os campos

em que folgava, o lago,

os batéis

 

t o r o N  T   O


Referência:

ATWOOD, Margaret. Solipsism while dying. In: __________.  The journals of Susanna Moodie: journal III. Toronto, CA: Oxford University Press, 1970. p. 52-53.

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