Um poema a falar da morte do cineasta, pensador e poeta italiano Pier Paolo Pasolini (5.3.1922−2.11.1975), assassinado próximo ao hidro-aeródromo de Óstia, em circunstâncias que até o momento não ficaram suficientemente aclaradas, haja vista que o autor do crime, Giuseppe Pelosi (28.6.1958−20.7.2017), findo o cumprimento da pena que lhe fora imposta, declarou não haver matado Pasolini, tendo confessado o delito em razão de ameaças que sofrera − o que levanta a suspeita de ilícito em concurso de pessoas.
Algo distintamente do poeta lusitano – a afirmar que pouco sabe acerca de Pasolini −, posso afirmar que nos anos 80 assisti a algumas de suas controversas películas, como “O Evangelho segundo São Mateus” (1964), “Teorema” (1968) – obra literária também, em cujas páginas me aventurei −, Decameron (1971), “Os contos de Canterbury” (1972) e “Salò ou os 120 Dias de Sodoma” (1975) – esta última lançada no mesmo ano da morte do autor, com estribo na libertina novela do Marquês de Sade (2.6.1740−2.12.1814). Do quanto presenciei, poderia sentenciar: um legado marcado pelo inconformismo!
J.A.R. – H.C.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
Requiem para Pier Paolo Pasolini
Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
Era novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa; uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo − amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece ou brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino, esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meritíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Salò, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa, a nojenta farsa, essa continua.
Pier Paolo Pasolini
(1922-1975)
Referência:
ANDRADE, Eugénio de. Requiem para Pier Paolo Pasolini. In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção, organização, introdução e notas). Poemas portugueses: antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI. Prefácio de Vasco Graça Moura. 1. ed. Porto, PT: Porto Editora, 2009. p. 1439.
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