O poeta mato-grossense dialoga – não
saberia dizer, se real ou imaginariamente − com o escritor mineiro João Guimarães
Rosa (1908-1967), reconhecidamente, um mestre do neologismo, da recriação de
palavras a traduzir novos sentidos, num grande sertão em que muitos, com
acurácia e pertinência, veem as comezinhas contingências do mundo inteiro – e não
apenas o que dita as condicionantes do semiárido onde se passam as suas
estórias.
No poema há uma bela definição do que
seja a poesia: o néctar do ser! E muitas inflexões desconcertantes para quem,
no mundo, somente enxerga o tangível: “Para enxergar as coisas sem feitio é
preciso não saber nada. É preciso entrar em estado de árvore. É preciso entrar
em estado de palavra. Só quem está em estado de palavra pode enxergar as coisas
sem feitio”. Pois grandes são as veredas que desconhecemos – diria Rosa −, como
Pessoa diria que grandes são os desertos – e tudo é deserto!
J.A.R. – H.C.
Manoel de Barros
(1916-2014)
Retrato do artista
quando coisa
8
Levei o Rosa na beira
dos pássaros que fica no
meio da Ilha
Linguística.
Rosa gostava muito de
frases em que entrassem
pássaros.
E fez uma na hora:
A tarde está verde no
olho das garças.
E completou com Job:
sabedoria se tira das
coisas que não existem.
A tarde verde no olho
das garças não existia
mas era fonte do ser.
Era poesia.
Era o néctar do ser.
Rosa gostava muito do
corpo fônico das palavras.
Veja a palavra bunda,
Manoel.
Ela tem um bonito
corpo fônico além do
propriamente.
Apresentei-lhe a
palavra gravanha.
Por instinto
linguístico achou que gravanha seria
um lugar entrançado
de espinhos e bem
emprenhado de
filhotes de gravatá por baixo.
E era.
O que resta de
grandezas para nós são os
desconheceres −
completou.
Para enxergar as
coisas sem feitio é preciso
não saber nada.
É preciso entrar em
estado de árvore.
É preciso entrar em
estado de palavra.
Só quem está em
estado de palavra pode
enxergar as coisas
sem feitio.
Em: “Ensaios
fotográficos” (2000)
O grande pinheiro
(Paul Cézanne: pintor
francês)
Referência:
BARROS, Manoel de. Retrato do artista
quando coisa: seção 8. In: __________. Poesia completa. São Paulo, SP:
LeYa, 2013. p. 362-363.
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