Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Manoel de Barros - Retrato do artista quando coisa: seção 8

O poeta mato-grossense dialoga – não saberia dizer, se real ou imaginariamente − com o escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), reconhecidamente, um mestre do neologismo, da recriação de palavras a traduzir novos sentidos, num grande sertão em que muitos, com acurácia e pertinência, veem as comezinhas contingências do mundo inteiro – e não apenas o que dita as condicionantes do semiárido onde se passam as suas estórias.

No poema há uma bela definição do que seja a poesia: o néctar do ser! E muitas inflexões desconcertantes para quem, no mundo, somente enxerga o tangível: “Para enxergar as coisas sem feitio é preciso não saber nada. É preciso entrar em estado de árvore. É preciso entrar em estado de palavra. Só quem está em estado de palavra pode enxergar as coisas sem feitio”. Pois grandes são as veredas que desconhecemos – diria Rosa −, como Pessoa diria que grandes são os desertos – e tudo é deserto!

J.A.R. – H.C.

Manoel de Barros
(1916-2014)

Retrato do artista quando coisa

8

Levei o Rosa na beira dos pássaros que fica no
meio da Ilha Linguística.
Rosa gostava muito de frases em que entrassem
pássaros.
E fez uma na hora:
A tarde está verde no olho das garças.
E completou com Job:
sabedoria se tira das coisas que não existem.
A tarde verde no olho das garças não existia
mas era fonte do ser.
Era poesia.
Era o néctar do ser.
Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras.
Veja a palavra bunda, Manoel.
Ela tem um bonito corpo fônico além do
propriamente.
Apresentei-lhe a palavra gravanha.
Por instinto linguístico achou que gravanha seria
um lugar entrançado de espinhos e bem
emprenhado de filhotes de gravatá por baixo.
E era.
O que resta de grandezas para nós são os
desconheceres − completou.
Para enxergar as coisas sem feitio é preciso
não saber nada.
É preciso entrar em estado de árvore.
É preciso entrar em estado de palavra.
Só quem está em estado de palavra pode
enxergar as coisas sem feitio.

Em: “Ensaios fotográficos” (2000)

O grande pinheiro
(Paul Cézanne: pintor francês)

Referência:

BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa: seção 8. In: __________. Poesia completa. São Paulo, SP: LeYa, 2013. p. 362-363.

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