Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Alberto Blanco - Um cético Noé

Blanco retoma o mito de Noé para contrastar as imagens da borrasca e do mar que se formam à volta da arca com as que se deduzem do texto bíblico, em face da decisão do Senhor em devastar o que criara, eis que corrompido pela maldade e pela violência: os animais, sem consciência do que se passa, até apreciam o canto monocórdio do dilúvio, desconhecendo que transporta um sentido letal.

Há um certo sentido de disrupção na narrativa poética do autor mexicano − até para adequar-se à ideia de corte no curso normal de um processo no âmbito da natureza −, disrupção essa que, transpassando o espírito de Noé, permite-lhe ver, diante de todo o ceticismo frente ao sucedido, que a vida humana é um pervagar até um deserto, onde tudo incorre no mais absoluto esquecimento.

J.A.R. – H.C.


Alberto Blanco
(n. 1951)
 

Un escéptico Noé

Las voces, oigo las voces cantando
en medio del diluvio canciones dulces
con el crujir de las vigas que se mecen.

Es la lluvia que da sueño, la alabanza
del mar cuya paciencia levanta barcos.

El canto es bello, pero la violencia
que el oro y las ricas maderas suscitan,
crece como la duda en la cabeza de un rey.

Es la miseria del hombre que ignora
la vasta permanencia de la muerte.

En esta soledad que nunca conociste
te preguntas por los que se quedaron,
sufres y quisieras tener una respuesta.

Desde la oscuridad llegan los gritos
de los pájaros que nadie comprende.

Pudieron dejar el mundo, pero la morosa
voz de la prudencia, es la red minuciosa
que la araña teje preocupada por su presa.

Los argumentos de la noche son más duros
que el ir y venir de los remordimientos.

Entre los reflejos la imagen de aquellos
que construyeron su casa sobre la historia
de la arena, la roca y el pescado de la red.

La esperanza toca las aguas que ondulando
confunden a la calma con la profundidad.

Nada compensa los soles magníficos,
los campos azules coronados de gallos,
el salón de espejos donde parió la cierva.

Hay que ver el silencio de los animales
que escuchan para sentirse menos solos.

Es la música discreta de las vacas
que en su blancura pierden al pastor
y en la hierba aspiran a lo eterno.

De la niebla bajan los cielos grises
y escurre la luz de la primera edad.

Flota sobre los restos el Arca de Noé
que, recostado entre las ovejas, duerme
sin preocuparse por la semilla del mundo.

Sabe que más allá del cielo abierto
comienzan el desierto y el olvido.
 


A arca de Noé sobre o monte Ararat
(Simon de Myle: pintor holandês)
 

Um cético Noé

As vozes, ouço as vozes cantando,
no meio do dilúvio, doces canções
com o ranger das vigas que se mexem.

É a chuva que dá sono, a exaltação
do mar, cuja paciência sustém os barcos.

Bela é a canção, mas a violência,
que o ouro e as ricas madeiras suscitam,
cresce como a dúvida na cabeça de um rei.

É a miséria do homem que ignora
a vasta permanência da morte.

Nessa solidão que nunca conheceste,
perguntas-te pelos que ficaram para trás,
sofres e gostarias de ter uma resposta.

Da escuridão chegam os gritos
dos pássaros que ninguém compreende.

Poderiam ter deixado o mundo, mas a morosa
voz da prudência é a teia elaborada
que a aranha tece, preocupada com sua presa.

Os argumentos da noite são mais duros
do que o ir e vir dos remorsos.

Entre os reflexos, a imagem daqueles
que construíram sua casa sobre a história
da areia, da rocha e dos peixes da rede.

A esperança toca as águas que, ondulando,
confundem a calma com a profundidade.

Nada compensa os sóis magníficos,
os campos azuis coroados de galos,
o salão de espelhos onde a corça deu à luz.

Há que se ver o silêncio dos animais,
que põem-se a ouvir para sentirem-se menos sós.

É a música discreta das vacas
que, em sua brancura, extraviam-se do pastor
e, na relva, aspiram ao eterno.

Da névoa descem os céus cinzentos
e esvai-se a luz da primeira era.

Flutua sobre os escombros a Arca de Noé
que, deitado entre as ovelhas, dorme
sem preocupar-se com a semente do mundo.

Sabe que, para além do céu aberto,
começam o deserto e o oblívio.
 

Referência:

BLANCO, Alerto. Un escéptico Noé. In: __________.
Dawn of the senses: selected poems of Alberto Blanco. Edited by Juvenal Acosta with an introduction by José Emilio Pacheco. A bilingual edition: Spanish x English. San Francisco, CA: City Light Books, 1995. p. 48, 50 e 52. (‘Pocket Poets Series’; n. 52)

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