Blanco retoma o mito de Noé para contrastar
as imagens da borrasca e do mar que se formam à volta da arca com as que se
deduzem do texto bíblico, em face da decisão do Senhor em devastar o que criara,
eis que corrompido pela maldade e pela violência: os animais, sem consciência
do que se passa, até apreciam o canto monocórdio do dilúvio, desconhecendo que
transporta um sentido letal.
Há um certo sentido de disrupção na
narrativa poética do autor mexicano − até para adequar-se à ideia de corte no
curso normal de um processo no âmbito da natureza −, disrupção essa que, transpassando
o espírito de Noé, permite-lhe ver, diante de todo o ceticismo frente ao sucedido,
que a vida humana é um pervagar até um deserto, onde tudo incorre no mais
absoluto esquecimento.
J.A.R. – H.C.
Un escéptico Noé
Las voces, oigo las
voces cantando
en medio del diluvio
canciones dulces
con el crujir de las
vigas que se mecen.
Es la lluvia que da
sueño, la alabanza
del mar cuya
paciencia levanta barcos.
El canto es bello,
pero la violencia
que el oro y las
ricas maderas suscitan,
crece como la duda en
la cabeza de un rey.
Es la miseria del
hombre que ignora
la vasta permanencia
de la muerte.
En esta soledad que
nunca conociste
te preguntas por los
que se quedaron,
sufres y quisieras
tener una respuesta.
Desde la oscuridad
llegan los gritos
de los pájaros que
nadie comprende.
Pudieron dejar el
mundo, pero la morosa
voz de la prudencia,
es la red minuciosa
que la araña teje
preocupada por su presa.
Los argumentos de la
noche son más duros
que el ir y venir de
los remordimientos.
Entre los reflejos la
imagen de aquellos
que construyeron su
casa sobre la historia
de la arena, la roca
y el pescado de la red.
La esperanza toca las
aguas que ondulando
confunden a la calma
con la profundidad.
Nada compensa los
soles magníficos,
los campos azules
coronados de gallos,
el salón de espejos
donde parió la cierva.
Hay que ver el
silencio de los animales
que escuchan para
sentirse menos solos.
Es la música discreta
de las vacas
que en su blancura
pierden al pastor
y en la hierba
aspiran a lo eterno.
De la niebla bajan
los cielos grises
y escurre la luz de
la primera edad.
Flota sobre los
restos el Arca de Noé
que, recostado entre
las ovejas, duerme
sin preocuparse por
la semilla del mundo.
Sabe que más allá del
cielo abierto
comienzan el desierto
y el olvido.
Um cético Noé
As vozes, ouço as
vozes cantando,
no meio do dilúvio,
doces canções
com o ranger das
vigas que se mexem.
É a chuva que dá
sono, a exaltação
do mar, cuja
paciência sustém os barcos.
Bela é a canção, mas
a violência,
que o ouro e as ricas
madeiras suscitam,
cresce como a dúvida
na cabeça de um rei.
É a miséria do homem
que ignora
a vasta permanência
da morte.
Nessa solidão que
nunca conheceste,
perguntas-te pelos
que ficaram para trás,
sofres e gostarias de
ter uma resposta.
Da escuridão chegam
os gritos
dos pássaros que
ninguém compreende.
Poderiam ter deixado
o mundo, mas a morosa
voz da prudência é a teia
elaborada
que a aranha tece,
preocupada com sua presa.
Os argumentos da
noite são mais duros
do que o ir e vir dos
remorsos.
Entre os reflexos, a
imagem daqueles
que construíram sua
casa sobre a história
da areia, da rocha e
dos peixes da rede.
A esperança toca as
águas que, ondulando,
confundem a calma com
a profundidade.
Nada compensa os sóis
magníficos,
os campos azuis
coroados de galos,
o salão de espelhos
onde a corça deu à luz.
Há que se ver o
silêncio dos animais,
que põem-se a ouvir
para sentirem-se menos sós.
É a música discreta
das vacas
que, em sua brancura,
extraviam-se do pastor
e, na relva, aspiram
ao eterno.
Da névoa descem os
céus cinzentos
e esvai-se a luz da
primeira era.
Flutua sobre os
escombros a Arca de Noé
que, deitado entre as
ovelhas, dorme
sem preocupar-se com
a semente do mundo.
Sabe que, para além
do céu aberto,
começam o deserto e o
oblívio.
Referência:
BLANCO, Alerto. Un escéptico Noé. In: __________. Dawn of
the senses: selected poems of Alberto Blanco. Edited by Juvenal Acosta with
an introduction by José Emilio Pacheco. A bilingual edition: Spanish x English.
San Francisco, CA: City Light Books, 1995. p. 48, 50 e 52. (‘Pocket Poets
Series’; n. 52)
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