Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 12 de janeiro de 2020

Fernando Guimarães - A Poesia ou a Circunstância

O propósito se volta à construção da “cidade de amanhã”, esse projeto que nos faz levantar todos os dias com ânimo para dar algum sentido à vida: dos sonhos de um arquiteto ou engenheiro, da lógica e do cálculo, surge o plano que passará da imaginação à plena concretude, pelas mãos ígneas dos operários.

Mas há dúvida no discurso do poeta – ele próprio um operário da palavra: “construí-la-ão?” É que, de repente, não mais que de repente, os operários se sentiram sozinhos, sem ninguém com poder para secundar a realização dos seus sonhos – e pouco valerá o esforço que se reproduz nas “cicatrizes inúteis”, incrustadas em seus braços.

J.A.R. – H.C.

Fernando Guimarães
(n. 1928)

A Poesia ou a Circunstância

Construímos com parcimónia a cidade de amanhã:
pouco cimento, algumas pedras e o suor escasso das mãos...
Na tua mesa inclinada, o compasso e a régua
– ó engenheiro! – são barcos quase imóveis.

Onde ficará o mercado, a ágora, as fontes
ou a muralha? À volta, olhamos para a areia,
para as dunas redondas e estéreis, para essas sementes
          de quartzo
inabitáveis – pobre formigueiro humano!

Os operários pensam na ponte a construir
os seus alicerces, a frescura da água reflectida,
os barcos atravessando-a como ramos de uma árvore,
a simetria rigorosa dos arcos... Mas construí-la-ão?

Estamos sozinhos, cai o sono sobre as pálpebras
e acariciamos as cicatrizes inúteis dos nossos braços.
(O enxame, perseguido pelo vento súbito,
mergulha na terra e procura as suas flores ocas.)

Em: “Como lavrar a terra” (1975)

Música nas Tulherias
(Édouard Manet: pintor francês)

Referência:

GUIMARÃES, Fernando. A poesia ou a circunstância. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 189.

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