O propósito se volta à construção da “cidade de amanhã”, esse projeto
que nos faz levantar todos os dias com ânimo para dar algum sentido à vida: dos
sonhos de um arquiteto ou engenheiro, da lógica e do cálculo, surge o plano que
passará da imaginação à plena concretude, pelas mãos ígneas dos operários.
Mas há dúvida no discurso do poeta – ele próprio um operário da palavra:
“construí-la-ão?” É que, de repente, não mais que de repente, os operários se
sentiram sozinhos, sem ninguém com poder para secundar a realização dos seus sonhos
– e pouco valerá o esforço que se reproduz nas “cicatrizes inúteis”, incrustadas
em seus braços.
J.A.R. – H.C.
Fernando Guimarães
A Poesia ou a Circunstância
Construímos com
parcimónia a cidade de amanhã:
pouco cimento,
algumas pedras e o suor escasso das mãos...
Na tua mesa
inclinada, o compasso e a régua
– ó engenheiro! – são
barcos quase imóveis.
Onde ficará o
mercado, a ágora, as fontes
ou a muralha? À
volta, olhamos para a areia,
para as dunas
redondas e estéreis, para essas sementes
de quartzo
de quartzo
inabitáveis – pobre
formigueiro humano!
Os operários pensam
na ponte a construir
os seus alicerces, a
frescura da água reflectida,
os barcos
atravessando-a como ramos de uma árvore,
a simetria rigorosa
dos arcos... Mas construí-la-ão?
Estamos sozinhos, cai
o sono sobre as pálpebras
e acariciamos as
cicatrizes inúteis dos nossos braços.
(O enxame, perseguido
pelo vento súbito,
mergulha na terra e
procura as suas flores ocas.)
Em: “Como lavrar a terra” (1975)
Música nas Tulherias
(Édouard Manet:
pintor francês)
Referência:
GUIMARÃES, Fernando. A poesia ou a
circunstância. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa
contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 189.
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