A escrita da poesia é uma semeadura ao final da qual não resulta
colheita proveitosa, senão apenas o que não se pode colher – a aridez, talvez,
da paisagem desértica, porque as sementes, decerto, caíram em terreno infértil –
a se associar o sentido dos versos à metáfora do semeador, contida em (Mateus,
13).
Couto suspeita que o malogro da colheita – ainda que haja recolhido ao
poema tudo o quanto sobre a terra existe – decorreu verdadeiramente do fato de
que o próprio poeta desconhecia a vida que alhures se manifestava, e em si
próprio, mesmo à vista de toda a acuidade verbal de que é detentor.
J.A.R. – H.C.
Mia Couto
(n. 1955)
Sementeira
O poeta
faz agricultura às
avessas:
numa única semente
planta a terra
inteira.
Com lâmina de enxada
a palavra fere o
tempo:
decepa o cordão
umbilical
do que pode ser um
chão nascente.
No final da lavoura
o poeta não tem conta
para fechar:
ele só possui
o que não se pode
colher.
Afinal,
não era a palavra que
lhe faltava.
Era a vida que ele, nele,
desconhecia.
Em: “Tradutor de chuvas” (2011)
O semeador
(Vincent van Gogh:
pintor holandês)
Referência:
COUTO, Mia. Sementeira. In: __________.
Poemas escolhidos. Seleção do autor.
Apresentação de José Castello. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras,
2016. p. 164.
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