Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Mia Couto - Sementeira

A escrita da poesia é uma semeadura ao final da qual não resulta colheita proveitosa, senão apenas o que não se pode colher – a aridez, talvez, da paisagem desértica, porque as sementes, decerto, caíram em terreno infértil – a se associar o sentido dos versos à metáfora do semeador, contida em (Mateus, 13).

Couto suspeita que o malogro da colheita – ainda que haja recolhido ao poema tudo o quanto sobre a terra existe – decorreu verdadeiramente do fato de que o próprio poeta desconhecia a vida que alhures se manifestava, e em si próprio, mesmo à vista de toda a acuidade verbal de que é detentor.

J.A.R. – H.C.

Mia Couto
(n. 1955)

Sementeira

O poeta
faz agricultura às avessas:
numa única semente
planta a terra inteira.

Com lâmina de enxada
a palavra fere o tempo:
decepa o cordão umbilical
do que pode ser um chão nascente.

No final da lavoura
o poeta não tem conta para fechar:
ele só possui
o que não se pode colher.

Afinal,
não era a palavra que lhe faltava.

Era a vida que ele, nele, desconhecia.

Em: “Tradutor de chuvas” (2011)

O semeador
(Vincent van Gogh: pintor holandês)

Referência:

COUTO, Mia. Sementeira. In: __________. Poemas escolhidos. Seleção do autor. Apresentação de José Castello. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2016. p. 164.

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