Não se deve tentar explicar um poema, já se disse alhures, mas tenho para mim
que, em todo poema, apesar de suas manifestas dimensões não redutíveis a um
plano consentâneo de mediação com os fatos da vida, há sempre um viés de
racionalidade que o atravessa, fundamentável em argumentos plenos de realidade.
Pois se assim não for, como explicar o imenso lastro de metaliteratura
existente, literatos deslindando poemas, afora a exuberante quantidade de
poemas sobre a própria poética – como muitos já o aqui postamos –, a exemplo de
mais este, de autoria de Carvalho da Silva, a propugnar pela busca do inusitado
em matéria de poesia: correr mundo à procura de novas palavras para um poema, capaz
de expressar a irrevelada morte – se não for do poema mesmo?!
J.A.R. – H.C.
Domingos Carvalho da Silva
(1915-2003)
A Rosa Irrevelada
Correi o mundo e
procurai palavras novas para um poema.
Dos oceanos trazei
nomes de peixes e remotas ilhas,
tranças de virgens,
seios afogados,
mas
antes de tudo
palavras para um poema.
Caminhai nas trevas
em busca de uma rosa.
Colhei nos cardos a
flor menosprezada.
Buscai no mar os liquens,
as esponjas,
trazei convosco
pérolas,
peixes negros e
plantas submarinas.
Trazei a náufraga de
olhos devorados
por gaivotas. A
náufraga de seios como luas
entre ciprestes de
algas. A náufraga
de coxas como praias
onde o desejo espuma
e desfalece.
Não procureis anelos
e ternura
nem um pássaro de
canto engaiolado.
Quero-vos noite
escura, corpo escuro
de mulher em
silêncio, rosa inviolável.
Trazei da noite
palavras para um poema.
A irrevelada morte
para um poema.
Em: “Praia Oculta” (1949)
Reflexos do Verão
(John Lautermilch:
pintor norte-americano)
Referência:
CARVALHO DA SILVA, Domingos. A rosa
irrevelada. In: __________. Múltipla
escolha: seleção de poemas. Introdução de Diana Bernardes. Rio de Janeiro,
RJ: José Olympio; Brasília, DF: INL, 1980. p. 56-57.
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