Bishop relembra, neste poema, o momento em que os portugueses, ao
navegarem pela costa leste do continente recém-descoberto, depararam com uma
baía que imaginaram ser um grande rio e o nomearam a partir da quadra em
fruição – Rio de Janeiro –, passando a reivindicá-lo como parte de seu império.
Observe-se que Bishop se utiliza de uma epígrafe extraída a uma obra do
grande historiador de arte inglês Kenneth Clark, a saber, “Landscape into Art”
(“Paisagem na Arte”), de 1949, com o objetivo de evidenciar o quanto da
percepção do ocidente em relação à região tem a ver com a estética então em
voga, plena de representações previamente tipificadas, com formulações
simbólicas próprias.
Ao olhar da poetisa, a paisagem tropical do Rio assoma em sua magnitude,
densidade e variedade: citam-se as folhas gigantes, samambaias monstruosas,
flores com nenúfares imensos, sem que haja um centímetro quadrado carente de folhagem,
tudo mesclado por cores que abarcam o amplo espectro da paleta.
Na tentativa de mostrar como poetas de
vários idiomas e épocas descrevem coisas e lugares, movo-me entre muitas vidas,
rostos e indumentárias, a cada vez identificando-me com um personagem; e salto
no tempo e na geografia. Assim, quanta distância há entre a China e o Brasil
(*), tal como era à época em que não tinha esse nome, quando os primeiros
brancos desembarcaram em suas costas e ocorreu um enfrentamento entre a
civilização católica romana e a natureza, com sua sensualidade demoníaca e
inocente, bem assim com o povo de lá, “selvagens”, “filhos da natureza”. Ou
talvez esse choque seja como o representamos – nós e Elizabeth Bishop, que,
ademais, viveu muito tempo no Brasil e descreveu uma paisagem por ela muito bem
conhecida (MILOSZ, 1998, p. 121).
J.A.R. – H.C.
Elizabeth Bishop
(1911-1979)
Brazil, January 1, 1502
… embroidered nature…
tapestried landscape.
– Landscape into Art, by Sir Kenneth Clark
Januaries, Nature
greets our eyes
exactly as she must
have greeted theirs:
every square inch
filling in with foliage –
big leaves, little
leaves, and giant leaves,
blue, blue-green, and
olive,
with occasional
lighter veins and edges,
or a satin under leaf
turned over;
monster ferns
in silver-gray
relief,
and flowers, too,
like giant water lilies
up in the air – up,
rather, in the leaves –
purple, yellow, two
yellows, pink,
rust red and greenish
white;
solid but airy; fresh
as if just finished
and taken off the
frame.
A blue-white sky, a
simple web,
backing for feathery
detail:
brief arcs, a
pale-green broken wheel,
a few palms, swarthy,
squat, but delicate;
and perching there in
profile, beaks agape,
the big symbolic
birds keep quiet,
each showing only
half his puffed and padded,
pure-coloured or
spotted breast.
Still in the
foreground there is Sin:
five sooty dragons
near some massy rocks.
The rocks are worked
with lichens, gray moonbursts
splattered and
overlapping,
threatened from
underneath by moss
in lovely hell-green
flames,
attacked above
by scaling-ladder
vines, oblique and neat,
“one leaf yes and on
leaf no” (in Portuguese).
The lizards scarcely
breathe; all eyes
are on the smaller,
female one, back-to,
her wicked tail
straight up and over,
red as red-hot wire.
Just so the
Christians, hard as nails,
tiny as nails, and
glinting,
in creaking armor,
came and found it all,
not unfamiliar:
no lovers’ walks, no
bowers,
no cherries to be
picked, no lute music,
but corresponding,
nevertheless,
to an old dream of
wealth and luxury
already out of style
when they left home –
wealth, plus a
brand-new pleasure.
Directly after Mass,
humming perhaps
L’ Homme armé or some such tune,
they ripped away into
the hanging fabric,
each out to catch an
Indian for himself –
those maddening
little women who kept calling,
calling to each other
(or had the birds waked up?)
and retreating,
always retreating, behind it.
Mata reduzida a carvão
(Félix-Émile Taunay:
pintor francês)
Brasil, 1º de Janeiro de 1502
...natureza
bordada... paisagem de tapeçaria.
– Landscape into Art, Sir Kenneth Clark
Janeiros, a Natureza
se revela
a nossos olhos como
revelou-se aos deles:
inteiramente recoberta
de folhagem –
folhas grandes,
pequenas, gigantescas,
azuis, verde-azulado,
verde-oliva,
aqui e ali um veio ou
borda mais claros,
ou um dorso de folha
acetinado;
samambaias monstruosas
em relevo
cinza-prata,
e flores, também,
como vitórias-régias imensas
no céu – melhor, no meio das copas –
roxas, rosadas, dois
tons de amarelo,
vermelho-ferrugem e
branco esverdeado;
sólidas mas aéreas;
frescas como se recém-pintadas
e retiradas das
molduras.
Céu de um branco
azulado, tela simples,
pano de fundo para
plumas detalhadas:
arcos breves, roda incompleta,
verde-claro,
palmeiras escuras,
atarracadas, mas sutis;
e, pousadas, em perfil,
bicos vem abertos,
as grandes aves
simbólicas se calam,
cada uma exibindo
meio peito apenas,
intumescido e
acolchoado, liso ou com pintas.
Ainda em primeiro
plano, o Pecado:
cinco dragões negros
junto a umas pedras grandes.
São pedras ornadas de
liquens, explosões lunares
cinzentas, superpostas
uma à outra,
ameaçadas de baixo
pelo musgo
em lindas chamas
verde-inferno,
atacadas do alto
por trepadeiras como
escadas, oblíquas, perfeitas,
“uma folha sim, outra
não” (como se diz em português).
Os lagartos mal
respiram: os olhos todos
se fixam no menor, a fêmea,
de costas,
a cauda maliciosa
levantada sobre o corpo,
vermelha como um fio
em brasa.
E foi assim que os
cristãos, duros e pequenos
como pregos de ferro,
e reluzentes,
como armaduras a ranger,
encontraram uma cena que já era
de certo modo
familiar:
nem alamedas suaves, caramanchões,
cerejeiras carregadas
nem alaúdes,
mas assim mesmo algo
que lembrava
um sonho antigo de
riqueza e luxo
já saindo de moda lá
na Europa –
riqueza, e mais um
prazer novinho em folha.
Logo depois da missa,
talvez cantarolando
L’Homme armé ou outro tema assim,
enlouquecidos,
rasgaram a tapeçaria
e cada um foi atrás
de uma índia –
aquelas mulherezinhas
irritantes
gritando uma pra
outra (ou foram as aves que acordaram?)
e se embrenhando, se embrenhando
no desenho.
Nota:
(*). Neste ponto, Czeslaw Milosz refere-se
ao que se pode constatar na continuidade de sua obra, mencionada no campo de
referências: o poema anterior ao de Bishop, transcrito na antologia, pertence
ao poeta chinês Po Chü-i (Bai Juyi) (772-846), a saber, “Madly Singing in the
Mountains” (“Cantando Loucamente nas Montanhas”) (MILOSZ, 1998, p. 120).
Referências:
BISHOP, Elizabeth. Brazil, january 1,
1502 / Brasil, 1º de janeiro de 1502. Tradução de Paulo Henriques Britto. In:
__________. Poemas escolhidos de
Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo
Henriques Britto. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras,
2012. Em inglês: p. 222 e 224; em português: p. 223 e 225.
MILOSZ, Czeslaw (Ed.). A book of luminous things: an
international anthology of poetry. 1st. ed. New York, NY: Houghton Mifflin
Harcourt, 1998.
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