O ente lírico, neste poema, a partir de uma varanda, vê-se separado em
relação às pessoas mais humildes da sociedade, conotando a perspectiva de que,
nela, ricos não se associam a pobres, sendo ele próprio alguém que se encontra
acima do status social daqueles a que faz referência.
O emprego de cenas a envolver café e migalhas do pão suscita prazeres
gustativos, enquanto as menções ao sol e ao rio ampliam o cenário e o impacto
visual à frente de quem o descreve. Assim, as imagens reais contempladas pelo orador
são vertidas em visões imaginativas autorreferenciais, vale dizer,
o falante, depois de observar atentamente o homem rico a deixar cair
desdenhosamente migalhas para as pessoas na calçada, passou a perceber a sua
própria mansão com a jactância daqueles que põem-se a
distribuir migalhas, multiplicadas como num milagre.
Daí porque o orador parece se convencer de que a distância entre ricos e
pobres jamais será superada, porque o sol continua a brilhar na varanda sobre a
qual não fará diferença, não exatamente na varanda onde estão os desabrigados.
O poema, ao final, inspira uma mensagem de esperança: ao afirmar que a
mansão de seus sonhos foi construída ao longo dos tempos pelos pássaros e pelo
rio a lavrar a terra, o ente lírico estimula os seus leitores a serem
engenhosos, aproveitando ao máximo aquilo de que dispõem na vida. No fim das
contas, não importa o que se perde ao longo dela, sempre teremos a natureza ao
nosso lado.
J.A.R. – H.C.
Elizabeth Bishop
(1911-1979)
A Miracle for Breakfast
At six o’clock we
were waiting for coffee,
waiting for coffee
and the charitable crumb
that was going to be
served from a certain balcony
– like kings of old,
or like a miracle.
It was still dark.
One foot of the sun
steadied itself on a
long ripple in the river.
The first ferry of
the day had just crossed the river.
It was so cold we
hoped that the coffee
would be very hot,
seeing that the sun
was not going to warm
us; and that the crumb
would be a loaf each,
buttered, by a miracle.
At seven a man
stepped out on the balcony.
He stood for a minute
alone on the balcony
looking over our
heads toward the river.
A servant handed him
the makings of a miracle,
consisting of one
lone cup of coffee
and one roll, which
he proceeded to crumb,
his head, so to
speak, in the clouds – along with the sun.
Was the man crazy?
What under the sun
was he trying to do,
up there on his balcony!
Each man received one
rather hard crumb
which some flicked
scornfully into the river,
and, in a cup, one
drop of the coffee.
Some of us stood
around, waiting for the miracle.
I can tell you what I
saw next; it was not a miracle.
A beautiful villa
stood in the sun
and from its doors
came the smell of hot coffee.
In front, a baroque
white plaster balcony
added by birds, who
nest along the river,
– I saw it with one
eye close to the crumb –
and galleries and
marble chambers. My crumb
and mansion, made for
me by a miracle,
through ages, by
insects, birds, and the river
working the stone.
Every day, in the sun,
at breakfast time I
sit on my balcony
with my feet up, and
I drink gallons of coffee.
We licked up the
crumb and swallowed the coffee.
A window across the
river caught the sun
as if the miracle
were working, on the wrong balcony.
A sala do café da manhã
(Bernhard Gutmann:
pintor alemão)
Um Milagre Matinal
Às seis, estávamos à
espera do café,
à espera do café e da
caridosa migalha
que seriam servidos
de uma certa varanda
– como por reis de
outrora, ou por milagre.
Ainda estava escuro.
Um dos pés do sol
se apoiava numa longa
ondulação do rio.
A primeira barca do
dia já cruzara o rio.
Tal era o frio que
ansiávamos por café
quentíssimo – pois
pelo visto o sol
não ia aquecer-nos –
e uma migalha
que fosse um pão para
cada um, como um milagre.
Às sete um homem
apareceu na varanda.
Ficou a sós por um
minuto na varanda
olhando não para nós,
mas para o rio.
Um criado deu-lhe
material para um milagre,
ou seja, uma única
xícara de café
e um pão, que ele
reduziu a migalhas,
com a cabeça nas
nuvens, tal qual o sol.
Seria um louco?
Parado ali, ao sol,
que estava ele
fazendo na varanda?
Cada um recebeu uma
mísera migalha,
que uns, com
desprezo, jogaram no rio,
e, numa xícara, uma
gota de café.
Alguns de nós
ficamos, à espera do milagre.
Digo o que vi em
seguida: não foi milagre.
Era um belo casarão,
aberto ao sol,
de onde vinha um
cheiro quente de café.
À frente, uma
estrutura barroca, uma varanda
de gesso branco,
feita pelas aves do rio
– foi o que vi ao
olhar de perto a migalha –
galerias e salões de
mármore. Minha migalha,
uma mansão, feita
para mim por milagre,
ao longo dos tempos,
pelas aves, pelo rio
a lavrar a pedra.
Todos os dias, ao sol,
pela manhã, me
instalo na varanda,
os pés para cima, e
bebo litros de café.
Engolimos a migalha e
a gota de café.
Além-rio, uma janela
refletia o sol
como se o milagre
fosse em outra varanda.
Referência:
BISHOP, Elizabeth. A miracle for
breakfast / Um milagre matinal. Tradução de Paulo Henriques Britto. In:
__________. Poemas escolhidos de
Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo
Henriques Britto. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras,
2012. Em inglês: p. 98 e 100; em português: p. 99 e 101.
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