Dirigindo-se certamente ao amado, Henriqueta nele espera ver a
cumplicidade, por conhecer demais o seu “intransferível patrimônio”, feito de
substância “supérflua” – muitos sentimentos, pensamentos e coisas simples que
se gravam na memória –, mas capazes de infringir um acento elegíaco em toda a
existência.
Um livro, uma rosa, o tracejar da lua, o pôr do sol – tudo tão trivial –,
não fosse a mirada singular da poetisa mineira, fluida como o irrestituível
tempo a nos recobrir com a névoa do transitório, do contingente, do fugaz,
tornando-nos cada vez mais pensativos com o avançar da idade.
J.A.R. – H.C.
Henriqueta Lisboa
(1901-1985)
Do Supérfluo
Também as cousas
participam
de nossa vida. Um
livro. Uma rosa.
Um trecho musical que
nos devolve
a horas inaugurais. O
crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da
terra
evoca apenas a
lembrança
de outra lembrança
mais longínqua.
O esboço tão somente
de um gesto
de ferina intenção. A
graça
de um retalho de lua
a pervagar num
reposteiro.
A mesa sobre a qual
me debruço
cada dia mais
temerosa
de meus próprios
dizeres.
Tais cousas de íntimo
domínio
talvez sejam
supérfluas.
No entanto
que tenho a ver
contigo
se não leste o livro
que li
não viste a rosa que
plantei
nem contemplaste o
pôr do sol
à hora em que o amor
se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não
prevalecem
as cousas – todavia
supérfluas –
do meu intransferível
patrimônio?
Natureza-Morta com Livro e Rosas
(Jeffrey Wood:
artista britânico)
Referência:
LISBOA, Henriqueta. Do supérfluo. In:
RODRIGUES, Claufe; MAIA, Alexandra (Eds.). 100
anos de poesia: um panorama da poesia brasileira no século XX. Volume I.
Rio de Janeiro, RJ: O Verso Edições, 2001. p. 103.
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