Se há algo que é marca indelével deste poema é a capacidade exibida pela poetisa de extrair conexões entre fatos, coisas e circunstâncias bastante díspares,
a começar pela existência, mais ou menos prosaica em terras norte-americanas,
de um hambúrguer designado “bicentenário”, cujo formato e tamanho o internauta
bem pode imaginar!
Para que se tenha uma ideia mais ou menos detalhada do emprego
ambivalente de palavras no corpo do poema, apresento, ao final da postagem,
logo antes da referência, um rápido comento sobre o que pude perceber ao longo
da tarefa de versão do original ao nosso idioma.
Aliás, um breve escólio: assim como os norte-americanos empregam o
idioma inglês de um modo muito particular, do mesmo modo os brasileiros
transformam o português num idioma bastante distinto do falado em Portugal. E
se permitam dizer, sem que ninguém se melindre, muito pior, bastando dar uma
olhada na produção de novelas da Rede Globo, onde há um deleite em se expor os
atores a pronunciar frases carregadas de erros, levando o público espectador a
reproduzi-las sem nenhum espírito crítico: lá se diz “Minha pátria é minha
língua”; aqui já se antecipa um estado geral de decadência – “O que quer e o que pode
essa língua?”
J.A.R. – H.C.
Heather McHugh
(n. 1948)
Language Lesson 1976
When Americans say a
man
takes liberties, they
mean
he’s gone too far. In
Philadelphia today I saw
a kid on a leash look
mom-ward
and announce his
fondest wish: one
bicentennial burger,
hold
the relish. Hold is
forget,
in American.
On the courts of
Philadelphia
the rich prepare
to serve, to fault
(*). The language is a game as well,
in which love can
mean nothing,
doubletalk mean lie.
I’m saying
doubletalk with me. I’m
saying
go so far the customs
are untold.
Make nothing without
words,
and let me be
the one you never
hold.
Amantes num Café
(Gotthardt Kuehl:
pintor alemão)
Lição do Idioma 1976
Quando os americanos
dizem que um homem
assume todas as
liberdades, querem eles afirmar
que terá ido longe
demais. Hoje, na Filadélfia, vi
um guri seguro à
trela olhar para a mãe-guardiã
e anunciar o seu mais
apreciado desejo: um
hambúrguer “bicentenário”,
para preservar-lhe
o sabor. Preservar é
esquecer,
no linguajar
americano.
Nos tribunais da
Filadélfia
os ricos se aprestam
para
prover serviço,
acusar. A linguagem é também um jogo,
no qual o amor nada
pode significar:
conversa dúbia
significa mentira. Estou dizendo
conversa dúbia dos
outros comigo. E somente até
onde os costumes não
são explicitados.
Não se é capaz de
fazer nada sem palavras,
então deixe-me ser
aquela que você jamais
preserva.
Nota:
(*) O poema de McHugh é cheio de duplos
sentidos e, no caso, este é um deles: a frase tanto pode ser entendida como a verti
ao português, reportando-se aos tribunais judiciais, quanto seria válida também
a interpretação de cuja translação resultasse menção às quadras de basquete na
Filadélfia, onde os ricos entram no jogo para dar assistências e para cometer
faltas.
Outra associação é ao bicentenário dos
EUA – lembremo-nos da declaração assinada em 4 de julho de 1776 –, daí os elos
com o “1976” no título do poema e com a graciosa referência ao garoto sem
liberdade – um dos valores tão caros aos norte-americanos –, ainda atrelado à
mãe.
Por fim, o jogo de palavras criado pela autora, ao afirmar que “preservar é esquecer” no linguajar americano, leva a
que, o dístico final do poema, possa ser reescrito como o deseja, de fato, a poetisa: então
deixe-me ser aquela que você nunca “esquece”!
Referência:
McHUGH, Heather. Language lesson 1976. In:
DOVE, Rita (Ed.). The penguin anthology
of twentieth century american poetry. New York, NY: Penguin Books, 2013. p.
454.
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