A noite ainda não chegou e os objetos parecem já perder substância,
tangibilidade, nitidez: passam a halos, sombras, transparências, meras sugestões.
Tornam-se silenciosos, tristes e taciturnos, inatingíveis pela linguagem, ainda
que provida pelos mais prestigiosos recursos de elocução.
Tudo acaba por pairar na sensibilidade do poeta, como naquele famoso
poema de Drummond, a afirmar que o verso está “cá dentro e não quer sair”,
embora a poesia do momento inunde a sua vida inteira. E na fronteira da noite,
as coisas parecem muito mais afeitas a provocar sobreposições de pensamentos,
como tardes sobre tardes.
J.A.R. – H.C.
Joaquim Cardozo
(1897-1978)
Os objetos antes da noite
Por que os objetos se
esvaziaram
Se desocuparam dos
seus volumes?
Das suas cores se
derramaram
E emagreceram nos
seus limites,
Deixando no ar,
apenas, halos extremais?
– Por quê? Se ainda
não é noite...
A sombra ainda não
chegou
E sem a sombra todos eles
não perderam
A sua utilidade, e,
nem enlouqueceram.
Por que então ficaram
assim noturnos?
Por quê? Se ainda não
é noite...
De transparências
inconstantes
De arquiteturas
oscilantes
Parece que regrediram
ao ser do ante-ser
À sugerência do que
seriam antes da forma
que lhes deram.
– O que aparece é o
que parece: um parecer
No seio do que ainda
não é noite.
Por que essas imagens
de fraturas
E dentre as fendas um
sorriso oculto?
Um trismo da forma,
um cirro mudo
De uma esquecida
morte: incerto vulto.
É como se fragmentos
já fosse tudo.
Por quê? Se ainda não
é noite...
Fora da ilusão dos
meus sentidos
Oh! meus pobres
objetos antidiurnos
Quanto mais
guardados, tanto mais perdidos
Tão tristes e
taciturnos,
Tão tristes que
parecem que estão mortos
No esquecido seu
lugar ¿noturno?
Mas, por que brilham?
De uma luz de fora?
Em verde, azul e rosa
de anúncios luminosos
Quando começa a
escurecer nas ruas da cidade.
Cores fora-surgindo
da primeira sombra
– Primeira camada do
crepúsculo dourante –
Por que brilham? Se
ainda não é noite...
É que talvez,
talvez... é que
A noite: várias
tardes sobrepostas:
Tardes sobre tardes,
sobre muitas,
Muitas de muitas
outras acrescidas
– A noite: monte de
tardes, é que vem tarde
Vem tarde.
Em: “Mundos Paralelos: versos urgentes”
(1970)
Paris antiga à noite
(Jean-Charles
Decoudun: pintor francês)
Referência:
CARDOZO, Joaquim. Os objetos antes da
noite. In: __________. Poesias completas.
Rio de Janeiro, GB: Civilização Brasileira; Convênio INL & MEC, 1971. p.
165-167. (Coleção ‘Poesia Hoje’; Série ‘Poetas Brasileiros’; v. 20)
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