Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Joaquim Cardozo - Os objetos antes da noite

A noite ainda não chegou e os objetos parecem já perder substância, tangibilidade, nitidez: passam a halos, sombras, transparências, meras sugestões. Tornam-se silenciosos, tristes e taciturnos, inatingíveis pela linguagem, ainda que provida pelos mais prestigiosos recursos de elocução.

Tudo acaba por pairar na sensibilidade do poeta, como naquele famoso poema de Drummond, a afirmar que o verso está “cá dentro e não quer sair”, embora a poesia do momento inunde a sua vida inteira. E na fronteira da noite, as coisas parecem muito mais afeitas a provocar sobreposições de pensamentos, como tardes sobre tardes.

J.A.R. – H.C.

Joaquim Cardozo
(1897-1978)

Os objetos antes da noite

Por que os objetos se esvaziaram
Se desocuparam dos seus volumes?
Das suas cores se derramaram
E emagreceram nos seus limites,
Deixando no ar, apenas, halos extremais?
– Por quê? Se ainda não é noite...

A sombra ainda não chegou
E sem a sombra todos eles não perderam
A sua utilidade, e, nem enlouqueceram.
Por que então ficaram assim noturnos?
Por quê? Se ainda não é noite...

De transparências inconstantes
De arquiteturas oscilantes
Parece que regrediram ao ser do ante-ser
À sugerência do que seriam antes da forma
que lhes deram.
– O que aparece é o que parece: um parecer
No seio do que ainda não é noite.

Por que essas imagens de fraturas
E dentre as fendas um sorriso oculto?
Um trismo da forma, um cirro mudo
De uma esquecida morte: incerto vulto.
É como se fragmentos já fosse tudo.
Por quê? Se ainda não é noite...

Fora da ilusão dos meus sentidos
Oh! meus pobres objetos antidiurnos
Quanto mais guardados, tanto mais perdidos
Tão tristes e taciturnos,
Tão tristes que parecem que estão mortos
No esquecido seu lugar ¿noturno?

Mas, por que brilham? De uma luz de fora?
Em verde, azul e rosa de anúncios luminosos
Quando começa a escurecer nas ruas da cidade.
Cores fora-surgindo da primeira sombra
– Primeira camada do crepúsculo dourante –
Por que brilham? Se ainda não é noite...

É que talvez, talvez... é que
A noite: várias tardes sobrepostas:
Tardes sobre tardes, sobre muitas,
Muitas de muitas outras acrescidas
– A noite: monte de tardes, é que vem tarde
Vem tarde.

Em: “Mundos Paralelos: versos urgentes” (1970)

Paris antiga à noite
(Jean-Charles Decoudun: pintor francês)

Referência:

CARDOZO, Joaquim. Os objetos antes da noite. In: __________. Poesias completas. Rio de Janeiro, GB: Civilização Brasileira; Convênio INL & MEC, 1971. p. 165-167. (Coleção ‘Poesia Hoje’; Série ‘Poetas Brasileiros’; v. 20)

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