Só mesmo um poeta para tornar possível uma
poesia a versar sobre um ato de violência, no caso, o fuzilamento de outro
poeta, o espanhol Federico García Lorca (1898-1936), em Granada (ES), por
militares, à ordem da ditadura franquista, na noite de 19 de agosto de 1936,
com o agravante de que, até hoje, não se sabe do paradeiro de seus restos
mortais.
O poetinha emprega uma epígrafe extraída a um
poema de outro famoso poeta espanhol, Antonio Machado – “El crimen fue en
Granada” –, que procurarei postar aqui no bloguinho, em breve, para que os
leitores possam confrontar os dois poemas e deduzir que tudo pode se tornar
mote para um poema, na mente daqueles que têm sensibilidade à flor da pele.
J.A.R. – H.C.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
A Morte de Madrugada
Muerto cayó Federico
(Antonio Machado)
Uma certa madrugada
Eu por um caminho andava
Não sei bem se estava bêbado
Ou se tinha a morte n’alma
Não sei também se o caminho
Me perdia ou encaminhava
Só sei que a sede queimava-me
A boca desidratada.
Era uma terra estrangeira
Que me recordava algo
Com sua argila cor de sangue
E seu ar desesperado.
Lembro que havia uma estrela
Morrendo no céu vazio
De uma outra coisa me lembro:
...Un horizonte de perros
Ladra muy lejos del rio...
De repente reconheço:
Eram campos de Granada!
Estava em terras de Espanha
Em sua terra ensanguentada
Por que estranha providência
Não sei... não sabia nada...
Só sei da nuvem de pó
Caminhando sobre a estrada
E um duro passo de marcha
Que em meu sentido avançava.
Como uma mancha de sangue
Abria-se a madrugada
Enquanto a estrela morria
Numa tremura de lágrima
Sobre as colinas vermelhas
Os galhos também choravam
Aumentando a fria angústia
Que de mim transverberava.
Era um grupo de soldados
Que pela estrada marchava
Trazendo fuzis ao ombro
E impiedade na cara
Entre eles andava um moço
De face morena e cálida
Cabelos soltos ao vento
Camisa desabotoada.
Diante de um velho muro
O tenente gritou: Alto!
£ à frente conduz o moço
De fisionomia pálida.
Sem ser visto me aproximo
Daquela cena macabra
Ao tempo em que o pelotão
Se dispunha horizontal.
Súbito um raio de sol
Ao moço ilumina a face
E eu à boca levo as mãos
Para evitar que gritasse.
Era ele, era Federico
O poeta meu muito amado
A um muro de pedra seca
Colado, como um fantasma.
Chamei-o: García Lorca
Mas já não ouvia nada
O horror da morte imatura
Sobre a expressão estampada.
Mas que me via, me via
Porque em seus olhos havia
Uma luz mal disfarçada.
Com o peito de dor rompido
Me quedei, paralisado
Enquanto os soldados miram
A cabeça delicada.
Assim vi a Federico
Entre dois canos de arma
A fitar-me estranhamente
Como querendo falar-me.
Hoje sei que teve medo
Diante do inesperado
E foi maior seu martírio
Do que a tortura da carne.
Hoje sei que teve medo
Mas sei que não foi covarde
Pela curiosa maneira
Com que de longe me olhava
Como quem me diz: a morte
É sempre desagradável
Mas antes morrer ciente
Do que viver enganado.
Atiraram-lhe na cara
Os vendilhões de sua pátria
Nos seus olhos andaluzes
Em sua boca de palavras.
Muerto cayó Federico
Sobre a terra de Granada
La tierra del inocente
No la tierra del culpable.
Nos olhos que tinha abertos
Numa infinita mirada
Em meio a flores de sangue
A expressão se conservava
Como a segredar-me: – A morte
É simples, de madrugada...
Lorca 4
“No duerme nadie por el
mundo. Nadie, nadie.”
Do poema: “Ciudad sin
sueño”
(Emily Tarleton: pintora
norte-americana)
Referência:
MORAES, Vinicius. A morte de madrugada. In:
__________. Antologia poética. 1. ed. 14. reimpressão. São Paulo,
SP: Companhia das Letras, 2000. p. 187-190.
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