Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Vinicius de Moraes - A Morte de Madrugada

Só mesmo um poeta para tornar possível uma poesia a versar sobre um ato de violência, no caso, o fuzilamento de outro poeta, o espanhol Federico García Lorca (1898-1936), em Granada (ES), por militares, à ordem da ditadura franquista, na noite de 19 de agosto de 1936, com o agravante de que, até hoje, não se sabe do paradeiro de seus restos mortais.

 

O poetinha emprega uma epígrafe extraída a um poema de outro famoso poeta espanhol, Antonio Machado – “El crimen fue en Granada” –, que procurarei postar aqui no bloguinho, em breve, para que os leitores possam confrontar os dois poemas e deduzir que tudo pode se tornar mote para um poema, na mente daqueles que têm sensibilidade à flor da pele.

 

J.A.R. – H.C.

 

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

 

A Morte de Madrugada

 

Muerto cayó Federico

(Antonio Machado)

 

Uma certa madrugada

Eu por um caminho andava

Não sei bem se estava bêbado

Ou se tinha a morte n’alma

Não sei também se o caminho

Me perdia ou encaminhava

Só sei que a sede queimava-me

A boca desidratada.

Era uma terra estrangeira

Que me recordava algo

Com sua argila cor de sangue

E seu ar desesperado.

Lembro que havia uma estrela

Morrendo no céu vazio

De uma outra coisa me lembro:

...Un horizonte de perros

Ladra muy lejos del rio...

 

De repente reconheço:

Eram campos de Granada!

Estava em terras de Espanha

Em sua terra ensanguentada

Por que estranha providência

Não sei... não sabia nada...

Só sei da nuvem de pó

Caminhando sobre a estrada

E um duro passo de marcha

Que em meu sentido avançava.

 

Como uma mancha de sangue

Abria-se a madrugada

Enquanto a estrela morria

Numa tremura de lágrima

Sobre as colinas vermelhas

Os galhos também choravam

Aumentando a fria angústia

Que de mim transverberava.

 

Era um grupo de soldados

Que pela estrada marchava

Trazendo fuzis ao ombro

E impiedade na cara

Entre eles andava um moço

De face morena e cálida

Cabelos soltos ao vento

Camisa desabotoada.

Diante de um velho muro

O tenente gritou: Alto!

£ à frente conduz o moço

De fisionomia pálida.

Sem ser visto me aproximo

Daquela cena macabra

Ao tempo em que o pelotão

Se dispunha horizontal.

 

Súbito um raio de sol

Ao moço ilumina a face

E eu à boca levo as mãos

Para evitar que gritasse.

Era ele, era Federico

O poeta meu muito amado

A um muro de pedra seca

Colado, como um fantasma.

Chamei-o: García Lorca

Mas já não ouvia nada

O horror da morte imatura

Sobre a expressão estampada.

Mas que me via, me via

Porque em seus olhos havia

Uma luz mal disfarçada.

 

Com o peito de dor rompido

Me quedei, paralisado

Enquanto os soldados miram

A cabeça delicada.

 

Assim vi a Federico

Entre dois canos de arma

A fitar-me estranhamente

Como querendo falar-me.

Hoje sei que teve medo

Diante do inesperado

E foi maior seu martírio

Do que a tortura da carne.

Hoje sei que teve medo

Mas sei que não foi covarde

Pela curiosa maneira

Com que de longe me olhava

Como quem me diz: a morte

É sempre desagradável

Mas antes morrer ciente

Do que viver enganado.

 

Atiraram-lhe na cara

Os vendilhões de sua pátria

Nos seus olhos andaluzes

Em sua boca de palavras.

Muerto cayó Federico

Sobre a terra de Granada

La tierra del inocente

No la tierra del culpable.

Nos olhos que tinha abertos

Numa infinita mirada

Em meio a flores de sangue

A expressão se conservava

Como a segredar-me: – A morte

É simples, de madrugada...

 

Lorca 4

“No duerme nadie por el mundo. Nadie, nadie.”

Do poema: “Ciudad sin sueño”

(Emily Tarleton: pintora norte-americana)

 

Referência:

 

MORAES, Vinicius. A morte de madrugada. In: __________. Antologia poética. 1. ed. 14. reimpressão. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2000. p. 187-190.

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