O poeta revela-se em suas transfigurações do
humano ao telúrico, àquilo que se expressa em conexão com as entranhas da
terra, ou melhor, em conjunção com os elementos vegetais e materiais, para
alcançar um estado de autoconsciência plena, já agora revelado, em seu refluxo,
pela imagem depurada de todas as mazelas humanas.
E se o voo de Neruda vai até o aparente limite
do desconsolo, não é porque se pretenda um demolidor de esperanças, senão
porque, em sua intuição, antevê na decomposição de tudo quanto existe, no
desgaste, na ruína, a perda da identidade das coisas – e teme, notoriamente,
por suas próprias imperfeições.
J.A.R. – H.C.
Pablo Neruda
(1904-1973)
El Poeta
Antes anduve por la
vida, en medio
de un amor doloroso:
antes retuve
una pequeña página de
cuarzo
clavándome los ojos en
la vida.
Compré bondad, estuve en
el mercado
de la codicia, respiré
las aguas
más sordas de la
envidia, la inhumana
hostilidad de máscaras y
seres.
Viví un mundo de ciénaga
marina
en que la flor de
pronto, la azucena
me devoraba en su
temblor de espuma,
y donde puse el pie
resbaló mi alma
hacia las dentaduras del
abismo.
Asi nació mi poesia,
apenas
rescatada de ortigas,
empuñada
sobre la soledad como un
castigo,
o apartó en el jardin de
la impudicia
su más secreta flor
hasta enterrarla.
Aislado así como el agua
sombría
que vive en sus
profundos corredores,
corrí de mano en mano,
al aislamiento
de cada ser, al odio
cuotidiano.
Supe que así vivían,
escondiendo
la mitad de los seres,
como peces
del más extraño mar, y
en las fangosas
inmensidades encontré la
muerte.
La muerte abriendo
puertas y caminos.
La muerte deslizándose en
los muros.
En: “Canto General”
(1950)
O Pintor e o Modelo
(Hilário Teixeira Lopes:
pintor português)
O Poeta
Outrora andei pela vida,
em meio
a um doloroso amor:
outrora retive
uma pequena página de
quartzo
fixando os meus olhos na
vida.
Comprei bondade, estive
no mercado
da cobiça, respirei as
águas
mais surdas da inveja, a
inumana
hostilidade de máscaras
e seres.
Vivi um mundo de pântano
marinho
em que de repente a
flor, a açucena,
devorava-me em seu
tremor de espuma,
e onde pus o pé, a minha
alma resvalou
até as dentaduras do
abismo.
Assim nasceu minha
poesia, mal
resgatada de urtigas,
empunhada
sobre a solidão como um
castigo,
ou apartada para banir a
sua mais secreta
flor no jardim da
imodéstia até enterrá-la.
Isolado assim como a
água sombria
que vive em seus
profundos corredores,
corri de mão em mão, ao
isolamento
de cada ser, ao ódio
cotidiano.
Soube que assim vivia a
esconder-se
a metade dos seres, como
peixes
do mais estranho mar, e
nas lodosas
imensidades encontrei a
morte.
A morte abrindo portas e
caminhos.
A morte deslizando nos
muros.
Em: “Canto Geral” (1950)
Referência:
NERUDA, Pablo. El poeta. In: __________. Selected
poems of Pablo Neruda. A bilingual edition (Spanish x English) edited and
translated by Ben Belitt. Introduction by Luis Monguió. New York, NY: Grove
Press Inc., First Evergreen Edition 1963 & Tenth Printing 1977. p. 176.
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