Há muito mais do que se pode contemplar nas diversas linguagens de que o
ano se reveste no transcurso do tempo: os fenômenos naturais detêm um profundo discernimento
de como a vida se processa. E é essa lógica, a presidir tudo quanto é visível,
que o poeta procura desvendar em meio à sua escrita propositadamente enigmática.
A flor, a folhagem da videira e a fruta originam-se em um lugar a que as
pessoas não têm acesso, ou melhor, num mundo subterrâneo a que os mortos
pertencem. Ora, pois: podemos estar vivenciando uma ilusão de que o reino
vegetal seja uma expressão de pura vida, quando, muito supostamente, apenas
reflita certo brilho emulado a um mundo que, aos nossos olhos, está exaurido –
mas que, bem diversamente, rege-se por fervilhante transformação!
J.A.R. – H.C.
Rainer Maria Rilke
(1875-1926)
I:14 (Die Sonette an Orpheus)
Wir gehen um mit
Blume, Weinblatt, Frucht.
Sie sprechen nicht
die Sprache nur des Jahres.
Aus Dunkel steigt ein
buntes Offenbares
und hat vielleicht
den Glanz der Eifersucht
der Toten an sich,
die die Erde stärken.
Was wissen wir von
ihrem Teil an dem?
Es ist seit lange
ihre Art, den Lehm
mit ihrem freien
Marke zu durchmärken.
Nun fragt sich nur:
tun sie es gern? …
Drängt diese Frucht,
ein Werk von schweren Sklaven,
geballt zu uns empor,
zu ihren Herrn?
Sind sie die Herrn,
die bei den Wurzeln schlafen,
und gönnen uns aus
ihren Uberflüssen
dies Zwischending aus
stummer Kraft und Küssen?
Sobre a Alma
(David LaChapelle:
ilustrador norte-americano)
I:14 (Os Sonetos a Orfeu)
Ligamo-nos à flor, ao
pâmpano e à fruta.
Não falam só a fala
das quatro estações.
Do escuro surdem
vívidas irisações,
onde o brilho da
inveja talvez repercuta
dos mortos que
refazem a força da terra.
Que sabemos de sua
parte em cada messe?
Há muito, livre, o
cerne deles transparece
no próprio barro que
os despojos lhes encerra.
Fazem-no de bom
grado? é o que nos perguntamos.
Esses frutos intensos,
trabalho de escravos,
repontam porventura
para nós, seus amos?
Ou serão eles os amos, que dormem ignavos
sob as raízes e nos
dão, do seu sobejo,
esse dom entre a muda
força bruta e o beijo?
Referência:
RILKE, Rainer Maria. Wir gehen um mit
blume, weinblatt, frucht / Ligamo-nos à
flor, ao pâmpano e à fruta. Tradução de José Paulo Paes. In: __________. Poemas.
Seleção, tradução e introdução de José Paulo Paes. 3. reimpressão. São Paulo,
SP: Companhia das Letras, 1993. Em alemão: p. 152; em português: p. 153.
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