As invenções humanas que foram criadas para, maquiavelicamente, dividir
os seres humanos: tal é o mote para o poema de Ricardo. Passado e futuro,
oriente e ocidente, hemisfério norte e hemisfério sul, cemitérios para públicos
distintos, em suma, a noite e o dia, a primeira a nos unir e o segundo a nos
separar.
Como não associar a questão a outras criações que se voltam contra o
isolamento e a edificação de muros – simbólicos ou reais, como o erigido entre
as duas Berlins ou o que Israel constrói na Cisjordânia, para impor barreiras
aos palestinos –, a exemplo da canção “Imagine”, de John Lennon, ou do álbum “The
Wall” (1979), do grupo Pink Floyd?!
J.A.R. – H.C.
(1895-1974)
Coroa Mural
Muro que hoje separa
os homens
em passado e futuro,
que divide, agora,
o coração em dois: em
oriente
e ocidente.
Divide o sol em dois:
em dois mistérios.
Divide o mundo em
dois:
em dois hemisférios,
Ou em dois
cemitérios?
No labirinto
do desentendimento
humano
o anjo rebelde
se debate em busca
de uma saída.
E ao mesmo tempo, é
expulso
de uma cor para
outra,
deixando os pés
escritos
em areia e neve,
na rude geografia
das injustiças.
(Só a dor e as
estrelas
são universais).
Mas, como destruí-lo?
Com as velhas
trombetas
de Jericó,
já douradas de pó?
Recolocando, no ar,
em seu lugar, agora
o novo arco celeste
de uma ponte pênsil?
Ou com a lira em flor
Que Anfião tocou em
Tebas?
Anfião, a quem possam
as pedras
transformar-se,
de novo, em pássaros?
Ou com o sol de
hidrogênio
e só pelo consolo
de morrermos, todos,
– todos, ao mesmo
tempo –
e, assim, um ser
irmão
do outro, por prêmio?
Ah! o herói obscuro
a quem – todos –
pudéssemos,
os que sofremos
dentro
e fora do muro;
de um só mal, todos
presa,
ofertar, toda em
ouro,
a coroa mural.
Igual à que os
romanos,
num afresco antigo,
estão oferecendo,
sob um céu de
turquesa,
ao primeiro soldado
que escalou a muralha
de uma fortaleza.
O dia é geográfico
A noite é universal.
Mas, se Deus ouvir
rádio,
esteja onde estiver,
ouvirá o meu grito:
por que a noite nos
une
e o dia nos separa?
Histeria
(Allan Kaprow: pintor
norte-americano)
Referência:
RICARDO, Cassiano. Coroa mural. In:
ALVES, Afonso Telles (Seleção e Notas). Antologia
de poetas brasileiros. São Paulo, SP: Logos, 1961. p. 230-231.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário