Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Cassiano Ricardo - Coroa Mural

As invenções humanas que foram criadas para, maquiavelicamente, dividir os seres humanos: tal é o mote para o poema de Ricardo. Passado e futuro, oriente e ocidente, hemisfério norte e hemisfério sul, cemitérios para públicos distintos, em suma, a noite e o dia, a primeira a nos unir e o segundo a nos separar.

Como não associar a questão a outras criações que se voltam contra o isolamento e a edificação de muros – simbólicos ou reais, como o erigido entre as duas Berlins ou o que Israel constrói na Cisjordânia, para impor barreiras aos palestinos –, a exemplo da canção “Imagine”, de John Lennon, ou do álbum “The Wall” (1979), do grupo Pink Floyd?!

J.A.R. – H.C.

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

Coroa Mural

Muro que hoje separa
os homens
em passado e futuro,
que divide, agora,
o coração em dois: em oriente
e ocidente.
Divide o sol em dois:
em dois mistérios.
Divide o mundo em dois:
em dois hemisférios,
Ou em dois cemitérios?

No labirinto
do desentendimento humano
o anjo rebelde
se debate em busca
de uma saída.
E ao mesmo tempo, é expulso
de uma cor para outra,
deixando os pés escritos
em areia e neve,
na rude geografia
das injustiças.

(Só a dor e as estrelas
são universais).

Mas, como destruí-lo?
Com as velhas trombetas
de Jericó,
já douradas de pó?
Recolocando, no ar,
em seu lugar, agora
o novo arco celeste
de uma ponte pênsil?
Ou com a lira em flor
Que Anfião tocou em Tebas?
Anfião, a quem possam
as pedras transformar-se,
de novo, em pássaros?

Ou com o sol de hidrogênio
e só pelo consolo
de morrermos, todos,
– todos, ao mesmo tempo –
e, assim, um ser irmão
do outro, por prêmio?

Ah! o herói obscuro
a quem – todos – pudéssemos,
os que sofremos dentro
e fora do muro;
de um só mal, todos presa,
ofertar, toda em ouro,
a coroa mural.

Igual à que os romanos,
num afresco antigo,
estão oferecendo,
sob um céu de turquesa,
ao primeiro soldado
que escalou a muralha
de uma fortaleza.

O dia é geográfico
A noite é universal.
Mas, se Deus ouvir rádio,
esteja onde estiver,
ouvirá o meu grito:
por que a noite nos une
e o dia nos separa?

Histeria
(Allan Kaprow: pintor norte-americano)

Referência:

RICARDO, Cassiano. Coroa mural. In: ALVES, Afonso Telles (Seleção e Notas). Antologia de poetas brasileiros. São Paulo, SP: Logos, 1961. p. 230-231.

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