O excerto abaixo foi extraído da seção “Parler” (“Falar”), da obra “Chants d’en bas”
(“Cantos de baixo”), de 1973, do suprarreferido poeta de
origem suíça, que se expressa em francês. Em suas palavras se observam os
efeitos da amplificação poética, como o recurso ao arroubo latejante do “sangue”,
que percorre do topo à base os versos do poema – suas dilatadas e autênticas
veias.
Mas a matéria de que o carme é integrado
mais se identifica como uma interdição à própria arte da poesia, pois sendo ela
nada mais que palavras – ou melhor, em sua maior ou melhor parte –, muito se
perde em manejá-las, haja vista que incapazes de dar conta, por exemplo, de
toda a dor humana.
J.A.R. – H.C.
Philippe Jaccottet
(n. 1925)
Parler
I
Parler est facile,
et tracer des mots sur la page,
en règle générale, est
risquer peu de chose:
un ouvrage de
dentellière, calfeutré,
paisible (on a pu même demander
à la bougie une clarté plus douce, plus trompeuse),
tous les mots sont écrits de la même encre,
“fleur” et “peur” par exemple sont presque pareils,
et j’aurai beau répéter “sang” du haut en bas
de la page, elle
n’en sera pas tachée,
ni moi blessé.
Aussi arrive-t-il qu’on prenne ce jeu en horreur,
qu’on ne
comprenne plus ce qu’on a voulu faire
en y jouant, au lieu
de se risquer dehors
et de
faire meilleur usage de ses mains.
Cela,
c’est quand on ne
peut plus se dérober à la douleur,
qu’elle ressemble à
quelqu’un qui approche
en déchirant les brumes dont
on s’enveloppe,
abattant un à un les obstacles, traversant,
la distance de plus en plus faible – si près soudain
qu’on ne voit plus que son mufle plus large
que le ciel.
Parler alors semble mensonge,
ou pire: lâche
insulte à la douleur,
et gaspillage
du peu de temps et de
forces qui nous reste.
San Giorgio Maggiore
ao Entardecer
(Claude Monet: pintor
francês)
Falar
I
Falar é fácil, e
traçar palavras sobre a página,
regra geral, é
arriscar pouca coisa:
um trabalho de
rendeira, minucioso,
pacífico (podia-se
mesmo pedir
à vela uma claridade
mais doce, mais enganosa),
todas as palavras se
escrevem com a mesma tinta,
“flor” e “pavor” por
exemplo são iguais,
e eu poderia repetir
“sangue” de alto a baixo
da página, ela não
ficará suja,
nem eu ferido.
Assim acontece que se
toma horror a esse jogo,
que não se compreende
mais o que se quis fazer
ao jogá-lo aqui, em
vez de se arriscar lá fora
e de fazer melhor uso
das mãos.
Isso
é quando não se pode
mais esquivar à dor,
quando ela se parece
com alguém que se aproxima
rasgando as brumas
com as quais nos envolvemos,
abatendo um a um os
obstáculos, vencendo
a distância cada vez
mais fraca – tão perto agora
que não vemos senão
seu focinho maior
do que o céu.
Falar então parece
mentira, ou pior: um vil
insulto à dor, e
desperdício
do pouco de tempo e
de forças que nos resta.
Referência:
JACCOTTET, Philippe. Parler: I / Falar:
I. Tradução de José Jeronymo Rivera. In: RIVERA, José Jeronymo (Organização e
Tradução). Poesia francesa: pequena antologia bilíngue. 2. ed. revista e
aumentada. Brasília, DF: Thesaurus, 2005. Em francês: p. 184 e 186; em
português: p. 185 e 187.
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