Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 4 de junho de 2017

Philippe Jaccottet - Falar

O excerto abaixo foi extraído da seção “Parler” (“Falar”), da obra “Chants d’en bas” (“Cantos de baixo”), de 1973, do suprarreferido poeta de origem suíça, que se expressa em francês. Em suas palavras se observam os efeitos da amplificação poética, como o recurso ao arroubo latejante do “sangue”, que percorre do topo à base os versos do poema – suas dilatadas e autênticas veias.

Mas a matéria de que o carme é integrado mais se identifica como uma interdição à própria arte da poesia, pois sendo ela nada mais que palavras – ou melhor, em sua maior ou melhor parte –, muito se perde em manejá-las, haja vista que incapazes de dar conta, por exemplo, de toda a dor humana.

J.A.R. – H.C.

Philippe Jaccottet
(n. 1925)

Parler

I

Parler est facile, et tracer des mots sur la page,
en règle générale, est risquer peu de chose:
un ouvrage de dentellière, calfeutré,
paisible (on a pu même demander
à la bougie une clarté plus douce, plus trompeuse),
tous les mots sont écrits de la même encre,
“fleur” et “peur” par exemple sont presque pareils,
et j’aurai beau répéter “sang” du haut en bas
de la page, elle n’en sera pas tachée,
ni moi blessé.

Aussi arrive-t-il qu’on prenne ce jeu en horreur,
qu’on ne comprenne plus ce qu’on a voulu faire
en y jouant, au lieu de se risquer dehors
et de faire meilleur usage de ses mains.

Cela,
c’est quand on ne peut plus se dérober à la douleur,
qu’elle ressemble à quelqu’un qui approche
en déchirant les brumes dont on s’enveloppe,
abattant un à un les obstacles, traversant,
la distance de plus en plus faible – si près soudain
qu’on ne voit plus que son mufle plus large
que le ciel.

Parler alors semble mensonge, ou pire: lâche
insulte à la douleur, et gaspillage
du peu de temps et de forces qui nous reste.

San Giorgio Maggiore ao Entardecer
(Claude Monet: pintor francês)

Falar

I

Falar é fácil, e traçar palavras sobre a página,
regra geral, é arriscar pouca coisa:
um trabalho de rendeira, minucioso,
pacífico (podia-se mesmo pedir
à vela uma claridade mais doce, mais enganosa),
todas as palavras se escrevem com a mesma tinta,
“flor” e “pavor” por exemplo são iguais,
e eu poderia repetir “sangue” de alto a baixo
da página, ela não ficará suja,
nem eu ferido.

Assim acontece que se toma horror a esse jogo,
que não se compreende mais o que se quis fazer
ao jogá-lo aqui, em vez de se arriscar lá fora
e de fazer melhor uso das mãos.

Isso
é quando não se pode mais esquivar à dor,
quando ela se parece com alguém que se aproxima
rasgando as brumas com as quais nos envolvemos,
abatendo um a um os obstáculos, vencendo
a distância cada vez mais fraca – tão perto agora
que não vemos senão seu focinho maior
do que o céu.

Falar então parece mentira, ou pior: um vil
insulto à dor, e desperdício
do pouco de tempo e de forças que nos resta.

Referência:

JACCOTTET, Philippe. Parler: I / Falar: I. Tradução de José Jeronymo Rivera. In: RIVERA, José Jeronymo (Organização e Tradução). Poesia francesa: pequena antologia bilíngue. 2. ed. revista e aumentada. Brasília, DF: Thesaurus, 2005. Em francês: p. 184 e 186; em português: p. 185 e 187.

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