Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Carlos Drummond de Andrade - Indicações

Nesta longa reflexão sobre a passagem do tempo, o ato mesmo de escrever, as mudanças de residências ao longo da vida, os objetos – mesas, livros, canetas, pratas, armários – que constituem o ambiente familiar – uma particular “arrumação de móveis, soma de linhas, volumes, superfícies” –, o poeta nos expõe todo um fluxo de consciência que o assola em determinado momento.

E lá está Minas, Itabira provavelmente – uma simples fotografia na parede a lhe doer sempre o bastante! Porque, como se costuma afirmar, o mineiro pode até, fisicamente, sair de Minas Gerais, mas Minas, de jeito nenhum, lhe sai da mente. O regresso à terra natal é sempre um estado de potencialidade, de persistente latência.

J.A.R. – H.C.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Indicações

Talvez uma sensibilidade maior ao frio,
desejo de voltar mais cedo para casa.
Certa demora em abrir o pacote de livros
esperado, que trouxe o correio.
Indecisão: irei ao cinema?
Dos três empregos de tua noite escolherás: nenhum.
Talvez certo olhar, mais sério, não ardente,
que pousas nas coisas, e elas compreendem.

Ou pelo menos supões que sim. São fiéis, as coisas
do teu escritório. A caneta velha. Recusas-te a trocá-la
pela que encerra o último segredo químico, a tinta imortal.
Certas manchas na mesa, que não sabes se o tempo,
se a madeira, se o pó trouxeram consigo.
Bem a conheces, tua mesa. Cartas, artigos, poemas
saíram dela, de ti. Da dura substância,
do calmo, da floresta partida elas vieram,
as palavras que achaste e juntaste, distribuindo-as.

A mão passa
na aspereza. O verniz que se foi. Não. E a árvore
que regressa. A estrada voltando. Minas que espreita,
e espera, longamente espera tua volta sem som.
A mesa se torna leve, e nela viajas
em ares de paciência, acordo, resignação,
Olhai a mesa que foge, não a toqueis. É a mesa volante,
de suas gavetas saltam papéis escuros, enfim os libertados
segredos
sobre a terra metálica se espalham, se amortalham e calam-se.

De novo aqui, miúdo território
civil, sem sonhos. Como pressentindo
que um dia se esvaziam os quartos, se limpam as paredes
e para um caminhão e descem carregadores,
e no livro municipal se cancela um registro,
olhas fundamente o risco de cada
coisa, a cor
de cada face dos objetos familiares.
A família é pois uma arrumação de móveis, soma
de linhas, volumes, superfícies. E são portas,
chaves, pratos, camas, embrulhos esquecidos,
também um corredor, e o espaço
entre o armário e a parede
onde se deposita certa porção de silencio, traças e poeira
que de longe em longe se remove... e insiste.

Certamente faltam muitas explicações, seria difícil
Compreender, mesmo ao cabo de longo tempo, por que
um gesto
se abriu, outro se frustrou, tantos esboçados,
como seria impossível guardar todas as vozes
ouvidas ao almoço, ao jantar, na pausa da noite,
um ano, depois outro, e outros e outros,
todas as vozes ouvidas na casa durante quinze anos.
Entretanto, devem estar em alguma parte: acumularam-se.
embeberam degraus, invadiram canos,
informaram velhos papéis, perderam a força, o calor,
existem hoje em subterrâneos, umas na memória, outras na
argila do sono.

Como saber? A princípio parece deserto,
como se nada ficasse, e um rio corresse
por tua casa, tudo absorvendo.
Lençóis amarelecem, gravatas puem,
a barba cresce, cai, os dentes caem,
os braços caem,
caem partículas de comida de um garfo hesitante,
as coisas caem, caem, caem,
e o chão está limpo, é liso.
Pessoas deitam-se, são transportadas, desaparecem,
e tudo é liso, salvo teu rosto
sobre a mesa curvado; e tudo imóvel.

Bons Amigos: retrato da irmã do artista
Bertha Edelfelt
(Albert Edelfelt: pintor sueco-finlandês)

Referência:

ANDRADE, Carlos Drummond. Indicações. In: __________. A rosa do povo. Prefácio de Affonso Romano de Sant’Anna. 44. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2011. p. 173-175.

Nenhum comentário:

Postar um comentário