Nesta longa reflexão sobre a passagem
do tempo, o ato mesmo de escrever, as mudanças de residências ao longo da vida,
os objetos – mesas, livros, canetas, pratas, armários – que constituem o ambiente
familiar – uma particular “arrumação de móveis, soma de linhas, volumes,
superfícies” –, o poeta nos expõe todo um fluxo de consciência que o assola em
determinado momento.
E lá está Minas, Itabira provavelmente –
uma simples fotografia na parede a lhe doer sempre o bastante! Porque, como se
costuma afirmar, o mineiro pode até, fisicamente, sair de Minas Gerais, mas
Minas, de jeito nenhum, lhe sai da mente. O regresso à terra natal é sempre um
estado de potencialidade, de persistente latência.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
Indicações
Talvez uma
sensibilidade maior ao frio,
desejo de voltar mais
cedo para casa.
Certa demora em abrir
o pacote de livros
esperado, que trouxe
o correio.
Indecisão: irei ao
cinema?
Dos três empregos de
tua noite escolherás: nenhum.
Talvez certo olhar,
mais sério, não ardente,
que pousas nas
coisas, e elas compreendem.
Ou pelo menos supões
que sim. São fiéis, as coisas
do teu escritório. A
caneta velha. Recusas-te a trocá-la
pela que encerra o
último segredo químico, a tinta imortal.
Certas manchas na
mesa, que não sabes se o tempo,
se a madeira, se o pó
trouxeram consigo.
Bem a conheces, tua
mesa. Cartas, artigos, poemas
saíram dela, de ti.
Da dura substância,
do calmo, da floresta
partida elas vieram,
as palavras que
achaste e juntaste, distribuindo-as.
A mão passa
na aspereza. O verniz
que se foi. Não. E a árvore
que regressa. A
estrada voltando. Minas que espreita,
e espera, longamente
espera tua volta sem som.
A mesa se torna leve,
e nela viajas
em ares de paciência,
acordo, resignação,
Olhai a mesa que
foge, não a toqueis. É a mesa volante,
de suas gavetas
saltam papéis escuros, enfim os libertados
segredos
sobre a terra
metálica se espalham, se amortalham e calam-se.
De novo aqui, miúdo
território
civil, sem sonhos.
Como pressentindo
que um dia se
esvaziam os quartos, se limpam as paredes
e para um caminhão e
descem carregadores,
e no livro municipal
se cancela um registro,
olhas fundamente o
risco de cada
coisa, a cor
de cada face dos
objetos familiares.
A família é pois uma
arrumação de móveis, soma
de linhas, volumes,
superfícies. E são portas,
chaves, pratos,
camas, embrulhos esquecidos,
também um corredor, e
o espaço
entre o armário e a
parede
onde se deposita
certa porção de silencio, traças e poeira
que de longe em longe
se remove... e insiste.
Certamente faltam
muitas explicações, seria difícil
Compreender, mesmo ao
cabo de longo tempo, por que
um gesto
se abriu, outro se
frustrou, tantos esboçados,
como seria impossível
guardar todas as vozes
ouvidas ao almoço, ao
jantar, na pausa da noite,
um ano, depois outro,
e outros e outros,
todas as vozes
ouvidas na casa durante quinze anos.
Entretanto, devem
estar em alguma parte: acumularam-se.
embeberam degraus,
invadiram canos,
informaram velhos
papéis, perderam a força, o calor,
existem hoje em
subterrâneos, umas na memória, outras na
argila do sono.
Como saber? A
princípio parece deserto,
como se nada ficasse,
e um rio corresse
por tua casa, tudo
absorvendo.
Lençóis amarelecem,
gravatas puem,
a barba cresce, cai,
os dentes caem,
os braços caem,
caem partículas de
comida de um garfo hesitante,
as coisas caem, caem,
caem,
e o chão está limpo,
é liso.
Pessoas deitam-se,
são transportadas, desaparecem,
e tudo é liso, salvo
teu rosto
sobre a mesa curvado;
e tudo imóvel.
Bons Amigos: retrato da irmã do artista
Bertha Edelfelt
(Albert Edelfelt: pintor sueco-finlandês)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond. Indicações.
In: __________. A rosa do povo. Prefácio de Affonso Romano de Sant’Anna.
44. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2011. p. 173-175.
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