Como numa pintura em
que os contrastes se acentuam por meio da aposição de cores mais ou menos
escuras, esta poesia do poeta e cronista Mello e Souza descreve o retraimento
do eu lírico no domínio da vida privada, enquanto na esfera pública transcorrem
fatos políticos desabonadores da história do país.
A opressão se passa
pela ostensiva falta de liberdade e a morte que a espreita, pela fome de
alimento e de justiça, pelos crimes que transformam a cabeça do poeta num
cárcere político, mas ainda assim a última instância de consciência insubmissa.
J.A.R. – H.C.
Claudio Mello e Souza
(1935-2011)
Claro-escuro
Do lado de lá do
vidro da janela,
a vida decanta a
noite:
tudo ó possível, nada
demente.
Com quem traz na
entranha,
fêmea aberta, um riacho
feminino,
um córrego só
nascente.
Do lado de cá do
vidro, a minha vida
cai como um peso de
papel
– e dentro do peso
cai a neve
sobre a cidade
sonhada.
Ser feliz não é uma
questão de ordem.
Manchas furta-cores
roubadas
da metade escura do poente.
Nos dois lados da
janela, a noite,
carbono ainda marcado
pelos dedos
deste dia que passou,
este papel
que a claridade torna
original:
desfaz o local do
crime
e apaga a impressão
digital.
(É fácil descobrir
quem me matou:
sou meu mordomo
e me descubro dentro
do meu sono.)
O sangue escorre em
ritmo de mel.
Transfundir meu
espanto para o papel.
Minha cabeça é um
cárcere político,
meus ideais já foram
torturados.
Vamos, está na hora de
irmos,
vamos pensar tão alto
que o mundo não pense
que estamos calados.
Do lado de cá dos
óculos,
por dentro dos olhos,
a luz da noite.
Tudo quanto no escuro
me parece claro:
sou tantos em tão
poucos, sou tão raro
que me calo: a minha
silhueta é um borrão
e minha sombra não me
segue mais;
libertou-se de mim,
libertei-me de mim.
Alfombra, pasto de
estranhos:
os torturadores fazem
a sesta,
enquanto a morte
espreita a liberdade.
Está tudo em ordem,
ate que eles recebam a ordem
unida, poluída.
Baionetas se calam
para fazer silêncio.
A vida pode explodir.
A morte passa a ser
recomendável.
É meio-dia em mim: a
cicatriz alegre de um raio
me faz tão claro
quanto este papel.
Estou no jardim. Deixo
que o sol me sangre.
Os amigos, os
inimigos, os estranhos que doeram,
doem lá dentro de
mim.
Gardênia branca,
cheiro de desmaio.
Hambre, hombre. As
Américas recebem o Nobel.
Temos sorte: sai o
prêmio para nossa morte.
Flagelação de Cristo
(Caravaggio: pintor
italiano)
Referência:
MELLO E SOUZA, Claudio. Claro-escuro. In: __________. Passageiro do tempo. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1985. p. 45-47. (‘Poesia Brasileira’)
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