Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 29 de abril de 2017

Claudio Mello e Souza - Claro-escuro

Como numa pintura em que os contrastes se acentuam por meio da aposição de cores mais ou menos escuras, esta poesia do poeta e cronista Mello e Souza descreve o retraimento do eu lírico no domínio da vida privada, enquanto na esfera pública transcorrem fatos políticos desabonadores da história do país.

 

A opressão se passa pela ostensiva falta de liberdade e a morte que a espreita, pela fome de alimento e de justiça, pelos crimes que transformam a cabeça do poeta num cárcere político, mas ainda assim a última instância de consciência insubmissa.

 

J.A.R. – H.C.

 

Claudio Mello e Souza

(1935-2011)

 

Claro-escuro

 

Do lado de lá do vidro da janela,

a vida decanta a noite:

tudo ó possível, nada demente.

Com quem traz na entranha,

fêmea aberta, um riacho feminino,

um córrego só nascente.

 

Do lado de cá do vidro, a minha vida

cai como um peso de papel

– e dentro do peso cai a neve

sobre a cidade sonhada.

Ser feliz não é uma questão de ordem.

 

Manchas furta-cores roubadas

da metade escura do poente.

Nos dois lados da janela, a noite,

 

carbono ainda marcado pelos dedos

deste dia que passou, este papel

que a claridade torna original:

desfaz o local do crime

e apaga a impressão digital.

 

(É fácil descobrir quem me matou:

sou meu mordomo

e me descubro dentro do meu sono.)

 

O sangue escorre em ritmo de mel.

 

Transfundir meu espanto para o papel.

Minha cabeça é um cárcere político,

meus ideais já foram torturados.

Vamos, está na hora de irmos,

vamos pensar tão alto

que o mundo não pense que estamos calados.

 

Do lado de cá dos óculos,

por dentro dos olhos, a luz da noite.

Tudo quanto no escuro me parece claro:

sou tantos em tão poucos, sou tão raro

que me calo: a minha silhueta é um borrão

e minha sombra não me segue mais;

libertou-se de mim, libertei-me de mim.

Alfombra, pasto de estranhos:

os torturadores fazem a sesta,

enquanto a morte espreita a liberdade.

 

Está tudo em ordem, ate que eles recebam a ordem

unida, poluída.

Baionetas se calam para fazer silêncio.

A vida pode explodir.

A morte passa a ser recomendável.

 

É meio-dia em mim: a cicatriz alegre de um raio

me faz tão claro quanto este papel.

Estou no jardim. Deixo que o sol me sangre.

Os amigos, os inimigos, os estranhos que doeram,

doem lá dentro de mim.

Gardênia branca, cheiro de desmaio.

Hambre, hombre. As Américas recebem o Nobel.

Temos sorte: sai o prêmio para nossa morte.

 

Flagelação de Cristo

(Caravaggio: pintor italiano)

 

Referência:


MELLO E SOUZA, Claudio. Claro-escuro. In: __________. Passageiro do tempo. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1985. p. 45-47. (Poesia Brasileira)

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