O poeta do Porto tece homenagens ao heterônimo de outro grande poeta,
bem assim ao rio que não é propriamente o rio de sua “aldeia” – o Douro –, mas
o rio Tejo, tema de um conhecidíssimo poema que também não é de Álvaro de
Campos, mas de Alberto Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio
que corre pela minha aldeia”...
O título da ode de Monteiro, de fato, associa-se a outro poema de
Fernando Pessoa, ou melhor, Álvaro de Campos, a saber, “Ode Marítima”, na qual aflora a imagem de um
navio a vapor que, ao longe, adentra o estuário do Tejo, mero ponto de partida
para um tributo ao imaginário das aventuras no mar.
J.A.R. – H.C.
Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de
Campos
E aqui estou eu,
ausente diante desta
mesa –
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um
só olhar.
Passei, e não me
lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste
canto da praça:
“Olá, Tejo! Aqui
estou eu outra vez!”
Não, não olhei.
Só depois que a
sombra de Álvaro de Campos se
sentou a meu lado
me lembrei que
estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi.
Passei e vim
fechar-me dentro das quatro paredes,
Tejo!
Não veio nenhum
criado dizer-me se era esta a mesa
em que Fernando Pessoa
se sentava,
contigo e os outros
invisíveis à sua volta,
inventando vidas que
não queria ter.
Eles ignoram-no como
eu te ignorei agora, Tejo.
Tudo são
desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e
falta de resposta.
Arrastas a tua massa
enorme como um cortejo de
glória,
e mesmo eu que sou
poeta passo a teu lado de olhos
fechados,
Tejo que não és da
minha infância,
mas que estás dentro
de mim como uma presença
indispensável,
majestade sem par nos
monumentos dos homens,
imagem muito minha do
eterno,
porque és real e tens
forma, vida, ímpeto,
porque tens vida,
sobretudo,
meu Tejo sem corvetas
nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de
te olhar!
O meu mal é não ser
dos que trazem a beleza metida
na algibeira
e não precisam de
olhar as coisas para as terem.
Quando não estás
diante dos meus olhos, estás
sempre longe.
Não te reduzi a uma
ideia para trazer dentro da cabeça,
e quando estás
ausente, estás mesmo ausente dentro
de mim.
Não tenho nada porque
só amo o que é vivo,
mas a minha pobreza é
um grande abraço em que
tudo é sempre virgem,
porque quando o
tenho, é concreto nos braços
fechados sobre a
posse.
Não tenho lugar para
nenhum cemitério dentro de
mim…
É por isso é que
fiquei a pensar como era grave ter
passado sem te olhar,
ó Tejo.
Mau sinal, mau sinal,
Tejo.
Má hora, Tejo, aquela
em que passei sem olhar para
onde estavas.
Preciso dum grande dia
a sós contigo, Tejo,
levado nos teus
braços,
debruçado sobre a cor
profunda das tuas águas,
embriagado do teu
vento que varre como um hino
de vitória
as doenças da cidade
triste e dos homens
acabrunhados...
Preciso dum grande
dia a sós contigo, Tejo,
para me lavar do que
deve andar de impuro dentro
de mim,
para os meus olhos
beberem a tua força de luxo
indomável,
para me lavar do
contágio que deve andar a
envenenar-me
dos homens que não
sabem olhar para ti e sorrir
à vida,
para que nunca mais,
Tejo, os meus olhos possam
voltar-se para outro
lado
quando tiverem diante
de si a tua grandeza, Tejo,
mais bela que
qualquer sonho,
porque é real,
concreta, e única!
Lisboa e o Tejo
(Carlos Botelho:
pintor português)
Referência:
MONTEIRO, Adolfo Casais. Ode ao Tejo e
à memória de Álvaro de Campos. In: TORGAL, Adosinda Providência; BOTELHO,
Clotilde Correia (Organização e Nota Prévia). Lisboa com seus poetas: colectânea de poesia sobre Lisboa. Lisboa,
PT: Publicações Dom Quixote, 2000. p. 71-73.
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