Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Adolfo Casais Monteiro - Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos

O poeta do Porto tece homenagens ao heterônimo de outro grande poeta, bem assim ao rio que não é propriamente o rio de sua “aldeia” – o Douro –, mas o rio Tejo, tema de um conhecidíssimo poema que também não é de Álvaro de Campos, mas de Alberto Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia”...

O título da ode de Monteiro, de fato, associa-se a outro poema de Fernando Pessoa, ou melhor, Álvaro de Campos, a saber, “Ode Marítima”, na qual aflora a imagem de um navio a vapor que, ao longe, adentra o estuário do Tejo, mero ponto de partida para um tributo ao imaginário das aventuras no mar.

J.A.R. – H.C.

Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)

Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos

E aqui estou eu,
ausente diante desta mesa –
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.
Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste canto da praça:
“Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!”
Não, não olhei.
Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se
sentou a meu lado
me lembrei que estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi.
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes,
Tejo!
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa
em que Fernando Pessoa se sentava,
contigo e os outros invisíveis à sua volta,
inventando vidas que não queria ter.
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de
glória,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos
fechados,
Tejo que não és da minha infância,
mas que estás dentro de mim como uma presença
indispensável,
majestade sem par nos monumentos dos homens,
imagem muito minha do eterno,
porque és real e tens forma, vida, ímpeto,
porque tens vida, sobretudo,
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de te olhar!
O meu mal é não ser dos que trazem a beleza metida
na algibeira
e não precisam de olhar as coisas para as terem.
Quando não estás diante dos meus olhos, estás
sempre longe.
Não te reduzi a uma ideia para trazer dentro da cabeça,
e quando estás ausente, estás mesmo ausente dentro
de mim.
Não tenho nada porque só amo o que é vivo,
mas a minha pobreza é um grande abraço em que
tudo é sempre virgem,
porque quando o tenho, é concreto nos braços
fechados sobre a posse.
Não tenho lugar para nenhum cemitério dentro de
mim…
É por isso é que fiquei a pensar como era grave ter
passado sem te olhar, ó Tejo.
Mau sinal, mau sinal, Tejo.
Má hora, Tejo, aquela em que passei sem olhar para
onde estavas.
Preciso dum grande dia a sós contigo, Tejo,
levado nos teus braços,
debruçado sobre a cor profunda das tuas águas,
embriagado do teu vento que varre como um hino
de vitória
as doenças da cidade triste e dos homens
acabrunhados...
Preciso dum grande dia a sós contigo, Tejo,
para me lavar do que deve andar de impuro dentro
de mim,
para os meus olhos beberem a tua força de luxo
indomável,
para me lavar do contágio que deve andar a
envenenar-me
dos homens que não sabem olhar para ti e sorrir
à vida,
para que nunca mais, Tejo, os meus olhos possam
voltar-se para outro lado
quando tiverem diante de si a tua grandeza, Tejo,
mais bela que qualquer sonho,
porque é real, concreta, e única!

Lisboa e o Tejo
(Carlos Botelho: pintor português)

Referência:

MONTEIRO, Adolfo Casais. Ode ao Tejo e à memória de Álvaro de Campos. In: TORGAL, Adosinda Providência; BOTELHO, Clotilde Correia (Organização e Nota Prévia). Lisboa com seus poetas: colectânea de poesia sobre Lisboa. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 2000. p. 71-73.

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