Um longo poema do “poetinha”, provavelmente redigido após a 2GM ou algum
outro relevante conflito bélico, pois reflete sobre a impossibilidade de se
fazer poesia num mundo semidestruído, no qual mesmo as lágrimas para chorar se
esgotaram.
Como se nota, é paradigmático o fato de o poeta afirmar a impotência da
poesia para fazer frente às tragédias que devastam os continentes,
manifestando-se sobre tal, por intermédio – ora pois – da mesma poesia. Ponderemos,
contudo: não uma poesia orientada ao encantamento, ao maravilhoso, ao fascínio,
mas uma poesia vocacionada a acercar-se do quotidiano e das misérias humanas.
J.A.R. – H.C.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
Mensagem à Poesia
Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é
totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou
tristíssimo, mas não posso ir esta noite
ao seu encontro.
Contem-lhe que há
milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a
reerguer, muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma
criança chorando em alguma parte
do mundo
E as mulheres estão
ficando loucas, e há legiões delas
carpindo
A saudade de seus
homens; contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias,
e sua magreza é extrema; contem-lhe
Que a vergonha, a
desonra, o suicídio rondam os lares, e é
preciso reconquistar
a vida.
Façam-lhe ver que é
preciso eu estar alerta, voltado para todos
os caminhos
Pronto a socorrer, a
amar, a mentir, a morrer se for preciso.
Ponderem-lhe, com
cuidado – não a magoem... – que se
não vou
Não é porque não
queira: ela sabe; é porque há um herói num
cárcere
Há um lavrador que
foi agredido, há um poça de sangue
numa praça.
Contem-lhe, bem em
segredo, que eu devo estar prestes, que
meus
Ombros não se devem
curvar, que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que
eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar
agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas
não posso mostrar meu sofrimento
Aos homens perplexos;
digam-lhe que me foi dada
A terrível
participação, e que possivelmente
Deverei enganar,
fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há,
longínqua, a claridade de uma aurora.
Se ela não
compreender, oh, procurem convencê-la
Desse invencível
dever que é o meu; mas digam-lhe
Que, no fundo, tudo o
que estou dando é dela, e que me
Dói ter de despojá-la
assim, neste poema; que por outro lado
Não devo usá-la em
seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre
mim quando a meu lado
Há fome e mentira; e
um pranto de criança sozinha numa
estrada
Junto a um cadáver de
mãe: digam-lhe que há
Um náufrago no meio
do oceano, um tirano no poder, um
homem
Arrependido;
digam-lhe que há uma casa vazia
Com um relógio
batendo horas; digam-lhe que há um grande
Aumento de abismos na
terra, há súplicas, há vociferações
Há fantasmas que me
visitam de noite
E que me cumpre
receber; contem a ela da minha certeza
No amanhã
Que sinto um sorriso
no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a
expectativa do milagre; por isso
Peçam-lhe que tenha
paciência, que não me chame agora
Com a sua voz de
sombra; que não me faça sentir covarde
De ter de abandoná-la
neste instante, em sua imensurável
Solidão; peçam-lhe,
oh, peçam-lhe que se cale
Por um momento, que
não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.
Mas não a traí. Em
meu coração
Vive a sua imagem
pertencida, e nada direi que possa
Envergonhá-la. A minha
ausência
É também um
sortilégio
Do seu amor por mim.
Vivo do desejo de revê-la
Num mundo em paz.
Minha paixão de homem
Resta comigo; minha
solidão resta comigo; minha
Loucura resta comigo.
Talvez eu deva
Morrer sem vê-Ia
mais, sem sentir mais
O gosto de suas
lágrimas, olhá-la correr
Livre e nua nas
praias e nos céus
E nas ruas da minha
insônia. Digam-lhe que é esse
O meu martírio; que
às vezes
Pesa-me sobre a cabeça
o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia
abatem-se sobre mim, e me impelem para
a treva
Mas que eu devo
resistir, que é preciso...
Mas que a amo com
toda a pureza da minha passada
adolescência
Com toda a violência
das antigas horas de contemplação
extática
Num amor cheio de
renúncia. Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu
triste e inconstante amigo
A quem foi dado se
perder de amor pelo seu semelhante
A quem foi dado se
perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de
frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se
perder de amor pelo direito
De todos terem uma
pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de
vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce
perder-se...
Por isso convençam a
ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos
que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque
sou seu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que
eu, não posso ir
Não é possível
Me é totalmente
impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.
O Muro do Jardim
(John Singer Sargent:
pintor ítalo-americano)
Referência:
MORAES, Vinicius. Mensagem à poesia.
In: __________. Antologia poética.
18. ed. Rio de Janeiro, RJ: Livraria José Olympio Editora, 1980. p. 131-133.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário