Sou mesmo suspeito para me pronunciar sobre a poetisa carioca Cecília
Meireles, haja vista que sou seu fã. E fã não de um modo qualquer,
senão pelos motivos mais do que palpáveis da excelência de sua técnica poética,
a nos fazer mergulhar no mundo radioso dos sentidos.
Senão vejamos: leia internauta, em voz compassada, o poema abaixo,
extraído de sua coletânea “Retrato Natural”, publicado inicialmente em 1949. Você
ficará desperto pelos domínios da água e do ar, do mar e das estrelas,
enquanto, submerso numa atmosfera onírica, será transplantando para um âmbito
de interações com vidas passadas que têm o poder de perdurar, ao redor do navio
no qual se obstina em singrar os pélagos mais remotos. É lá, nesse mar revolto,
que você terá acesso aos seus mortos, num cometa cuja franja se configura pelos
ecos de suas persistentes vozes.
Percebeu você que coisas com propensão à materialidade – como um cometa – ganham substância por meio de outras voláteis, v.g., ecos de vozes, como se os rastros pontilhados da
cauda do cometa capturassem os pulsos descontínuos dos clamores que aos céus ascendem,
vindos do mar?
Em suma: o retrato que a poetisa compendia não é meramente “natural”,
como faria crer o título de sua recolha, mas também “sobrenatural”,
considerando que postula se encontrar isento de todo bem e todo o mal, superando
o atributo de mortalidade do comum dos homens.
Um ‘intermezzo’ no poema, com matizes nietzschianos, não?! (rs).
J.A.R. – H.C.
Cecília Meireles
(1901-1964)
Apelo
Abri na noite as
grandes águas
Criadas no tempo de
chorar.
Levantei os mortos do
sonho
Que trouxestes para
viajar.
Fechai os olhos,
despedi-vos,
Atirai os mortos ao
mar!
Por amor às vossas
estrelas,
Chamai ventos de
solidão.
Em voz alta, dizei
responsos,
Descarregai o
coração!
Aos mortos que descem
nas águas,
Mandai amor, pedi
perdão!
Fazei-vos marinheiros
límpidos,
Isentos do bem e do
mal.
Dizei que, à procura
dos deuses,
Com um rumo
sobrenatural,
Necessitais da
despedida
De toda lembrança
mortal.
Ide, com o esbelto
movimento,
A graça da
libertação,
À proa das naves
solenes
Que os deuses vos
transportarão.
Mas não fiteis a
densa vaga
Que se arquear em
redor de vós!
– O rosto dos mortos
flutua
para sempre. E é um
longo cometa
a aérea franja da sua
voz.
Cristo Acalmando a Tempestade
Ludolf Backhuysen: pintor
germano-neerlandês
Referência:
MEIRELES, Cecília. Apelo. In:
__________. Poesias completas. v. II
– Mar absoluto e outros poemas / Retrato natural. Rio de Janeiro, RJ:
Civilização Brasileira, 1973. p. 136-137.
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