Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Cecília Meireles - Apelo

Sou mesmo suspeito para me pronunciar sobre a poetisa carioca Cecília Meireles, haja vista que sou seu fã. E fã não de um modo qualquer, senão pelos motivos mais do que palpáveis da excelência de sua técnica poética, a nos fazer mergulhar no mundo radioso dos sentidos.

Senão vejamos: leia internauta, em voz compassada, o poema abaixo, extraído de sua coletânea “Retrato Natural”, publicado inicialmente em 1949. Você ficará desperto pelos domínios da água e do ar, do mar e das estrelas, enquanto, submerso numa atmosfera onírica, será transplantando para um âmbito de interações com vidas passadas que têm o poder de perdurar, ao redor do navio no qual se obstina em singrar os pélagos mais remotos. É lá, nesse mar revolto, que você terá acesso aos seus mortos, num cometa cuja franja se configura pelos ecos de suas persistentes vozes.

Percebeu você que coisas com propensão à materialidade – como um cometa – ganham substância por meio de outras voláteis, v.g., ecos de vozes, como se os rastros pontilhados da cauda do cometa capturassem os pulsos descontínuos dos clamores que aos céus ascendem, vindos do mar?

Em suma: o retrato que a poetisa compendia não é meramente “natural”, como faria crer o título de sua recolha, mas também “sobrenatural”, considerando que postula se encontrar isento de todo bem e todo o mal, superando o atributo de mortalidade do comum dos homens.

Um ‘intermezzo’ no poema, com matizes nietzschianos, não?! (rs).

J.A.R. – H.C.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Apelo

Abri na noite as grandes águas
Criadas no tempo de chorar.
Levantei os mortos do sonho
Que trouxestes para viajar.
Fechai os olhos, despedi-vos,
Atirai os mortos ao mar!

Por amor às vossas estrelas,
Chamai ventos de solidão.
Em voz alta, dizei responsos,
Descarregai o coração!
Aos mortos que descem nas águas,
Mandai amor, pedi perdão!

Fazei-vos marinheiros límpidos,
Isentos do bem e do mal.
Dizei que, à procura dos deuses,
Com um rumo sobrenatural,
Necessitais da despedida
De toda lembrança mortal.

Ide, com o esbelto movimento,
A graça da libertação,
À proa das naves solenes
Que os deuses vos transportarão.

Mas não fiteis a densa vaga
Que se arquear em redor de vós!
– O rosto dos mortos flutua
para sempre. E é um longo cometa
a aérea franja da sua voz.

Cristo Acalmando a Tempestade
Ludolf Backhuysen: pintor germano-neerlandês 

Referência:

MEIRELES, Cecília. Apelo. In: __________. Poesias completas. v. II – Mar absoluto e outros poemas / Retrato natural. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1973. p. 136-137.

Nenhum comentário:

Postar um comentário