Vai aqui mais um poema sobre o poema, um tema a que volta e meia os
poetas regressam, haja vista que se trata de reflexão sobre o seu próprio labor,
um labor expresso na arte de compor versos, de amor às palavras, à expressão de
pensamentos que procuram manifestar, de modo o mais fidedigno possível, o que
vai no recôndito de sua alma.
Veja-se como o poeta e tradutor carioca Ivan Junqueira, falecido ainda
há pouco, metaforiza o poema: são anêmonas com vontade própria, depositadas no
fundo do mar quotidiano, onde catalisam os informes da memória, do amor e do
tormento, para oferecerem-se vivificadas aos recursos intelectivos do vate, que
apenas as materializa em linguagem. Quanta beleza, não?!
J.A.R. – H.C.
Ivan Junqueira
(1934-2014)
O Poema
Não sou eu que
escrevo o meu poema:
ele é que se escreve
e que se pensa,
como um polvo a
distender-se, lento,
no fundo das águas,
entre anêmonas
que nos abismos do
mar despencam.
Ele é que se escreve
com a pena
da memória, do amor,
do tormento,
de tudo o que aos
poucos se relembra:
um rosto, uma
paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã
adentro.
Ele se escreve vindo
do centro
de si mesmo, sempre
se contendo.
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou
instrumentos
que se escuta entre o
som e o silêncio.
As palavras com que
em vão o invento
não são mais que
ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe
acrescentam.
Seja belo ou, ao
invés, horrendo,
a ele é que cabe todo
o engenho,
não a mim, que apenas
o contemplo
como um sonho que se
sustenta
sobre o nada, quando
o mito e a lenda
eram as vísceras de
que o poema
se servia para ir-se
escrevendo.
Referência:
JUNQUEIRA, Ivan. O poema. In:
__________. Essa música. 1. ed. Rio
de Janeiro, RJ: Rocco, 2014. p. 9-10.
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