Como este bloguinho preza pela beleza, o que mais poderíamos trazer
senão mais do mesmo, sob a forma de poesia?! E mais uma poesia de Lêdo Ivo, o
poeta que também veio das Alagoas de Graciliano Ramos e chegou à Academia
Brasileira de Letras, com os méritos de sua aclamada obra.
Mesmo a apresentar um tema corriqueiro, prosaico até – a chuva sobre a
cidade –, o poema homônimo é capaz de extrair poesia dos eventos que o fluxo da
água engendra: a fuga dos pássaros, os relâmpagos, os barquinhos infantis de
papel.
E incita os leitores – amorosamente chamados por “meu irmão” e “minha
irmã” –, a deixarem-se envolver pela singularidade de um momento que,
invariável em sua ocorrência, jamais se exibe de forma idêntica à que passou.
Como reconhece o poeta, amanhã poderemos nos reconciliar com os grandes
temas poéticos. Apreciemos, por ora, a chuva que rola aos borbotões, deliciosamente...
J.A.R. – H.C.
Lêdo Ivo
(1924-2012)
A chuva sobre a cidade
(A Lêda)
Chove sobre a cidade
e a chuva inunda o
asfalto, difunde o desastre e o desencontro
e procura abater as
palmeiras que do fim da tarde
queriam apenas –
graça plena – as estrelas.
Os trovões reboam,
espantando os pássaros
que vieram
refugiar-se no meu quarto.
Os relâmpagos,
fotógrafos do absoluto, iluminam as pessoas que passam
– são outros rostos,
minha irmã, são as faces
revoltadas porque as
divindades impossibilitaram os idílios,
a chegada pontual a
uma casa, o já adiado trespasse com o inefável.
As sarjetas recebem
finalmente a Poesia. Como são belos
e nítidos os barcos
de papel
que navegam buscando
os reinos fantásticos, os inacessíveis!
A chuva tem uma
canção. Jamais uma elegia
para saudar sua
gentileza. Jamais uma ode,
um himeneu, uma
écloga deploratória.
Meu irmão, deixa que
a goteira molhe tuas últimas
poesias. Pouco
importa que amanhã te reconcilies com os grandes temas poéticos.
O amanhã é
inconsumível. A chuva te ensina
a ser invariável sem
se repetir.
Velejando
Rachelle Anne
Miller: artista canadense
Referência:
IVO, Lêdo. A chuva
sobre a cidade. In: __________. Os
melhores poemas de Lêdo Ivo. Seleção de Sérgio Alves Peixoto. 2. ed. São
Paulo, SP: Global, 1990. p. 112-113. (Os Melhores Poemas, n. 2)
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