Literalmente um “lobo na estepe”, Hesse, o reputado escritor alemão –
naturalizado suíço –, incorpora o poeta em estado de quase alheamento, um “contemplativo
marginal”.
O poeta entrou em comunhão com a natureza e com os homens e, fixado em
seu passamento, já não sente mais falta de um futuro, ponto de encontro de
todas as utopias de plenitude do mundo.
Apesar de suas muitas glórias, mensuráveis pelas inúmeras coroas que lhe arrumaram no túmulo, não há como sua memória escapar do trabalho erosivo do tempo, “esse grande escultor”, como diria Marguerite Yourcenar.
J.A.R. – H.C.
Hermann Hesse
(1877-1962)
O Poeta
Somente para mim, o
solitário,
murmura a fonte de
pedra sua canção de magia;
só para mim, só para
o solitário,
errantes nuvens
passam arrastando
sombras de cores como
sonhos sobre o campo.
Nem ofício me é dado,
nem casa, nem
lavoura, nem pomar:
é meu somente o que a
ninguém pertence
– é meu o arroio que
coleia atrás do véu da mata,
meu é o fecundo mar,
meu é o trinado de
pássaros das crianças que brincam,
a tristeza e o pranto
do apaixonado a sós no entardecer,
Meus são também os
templos dos deuses, meu é
o venerável horto do
passado.
Minha pátria é não
menos
a abóbada celeste com
a luz do amanhã;
muitas vezes nas asas
da saudade arroja-se minha alma
para o alto,
a olhar o glorioso
porvir da humanidade,
o amor acima da lei, o
amor de povo a povo.
Volto a encontrá-los
todos nobremente mudados:
o camponês, o rei, o comerciante,
a ativa marujada,
o jardineiro e o pastor,
todos
agradecidos celebrando
a festa mundial do porvir.
Falta apenas o poeta
– ele, o contemplativo
marginal,
a imagem pálida e o
portador do anseio da humanidade,
a quem o futuro, a
plenitude do mundo,
já não faz falta:
murcham
numerosas coroas em
seu túmulo,
mas a memória dele
está apagada.
Referência:
HESSE, Hermann. O poeta. In:
__________. Andares: antologia
poética. Tradução de Geir Campos. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1976. p.
59-60.
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