Temos aqui uma extensa postagem com a primeira das três seções do “Ensaio
sobre a Crítica”, do inglês Alexander Pope. A tradução que apresentamos – e o
seu original –, podem ser obtidos integralmente neste endereço eletrônico.
O ensaio, a rigor, apesar de ter a forma de um longo poema, com rimas e
métrica, expressa-se como se prosa fosse, o que não deixa de surpreender o
leitor, haja vista que os ensaios, modo geral, costumam ter forma livre, alguns
a configurar livros inteiros.
Mas o que importa mesmo é a pertinência dos argumentos de Pope, bem
assim a maravilhosa transposição feita ao português pela lusitana Marquesa
D’Alorna, que, como se afirma do frontispício da obra (LENCASTRE, 1844), era
conhecida entre os poetas portugueses pelo nome de Alcipe.
J.A.R. – H.C.
Alexander Pope
Apresentação de Ary
de Mesquita
(MESQUITA, 1988, p.
188-189)
Alexander Pope,
ilustre poeta inglês, nasceu em Londres a 21 de maio de 1688, e morreu no dia
30 de maio de 1744 em Twickenham.
Aos oito anos de
idade, sob a orientação de um padre, aprendeu os rudimentos de latim, grego e
história. Sendo, desde criança, muito doente, e impossibilitado de traquinar com
os meninos de sua idade, Pope, por índole amigo das letras, transformou os
estudos em único entretenimento, Um dos seus passatempos favoritos era o de
traduzir os grandes clássicos da antiguidade. Mais tarde, quando já literato,
traduziu de Ovídio o episódio de Safo e Faon e a fábula de Dríope, e de Homero
a Ilíada e a Odisseia etc.
Aos dezesseis anos
escreveu quatro “Pastorais” cuja correção e elegância revelam a mão de um
artista consumado ao invés de trair a pena de um adolescente. Aos vinte e um
anos, isto é, no princípio da vida, compôs o Essay on Criticism (Ensaio sobre a Crítica), que é uma obra
notável. Começou, por assim dizer, como outros acabaram, pois, tanto a Arte Poética de Horácio, como a de
Boileau, e a de Vauquelin de La Fresnaye etc., são obras da maturidade. Os
verdes anos com que Pope compôs a sua Arte
Poética (esse nome também caberia ao seu Ensaio Sobre a Crítica) não o impediram de lhe dar uma forma
elegante e corretíssima, e de recheá-la de mais graça e leveza do que, antes, Boileau
fizera com a sua. No gênero lírico, que não era o seu forte, Pope deixou uma
linda amostra: Eloisa to Abelard,
poemeto em que a grande amorosa francesa narra poeticamente o seu desventurado
amor, a sua revolta e os seus infortúnios.
Entre as mais
célebres produções de Pope é necessário citar The Rape of the Locke (O Rapto da Madeixa), a que o próprio autor e
os seus coetâneos deram uma importância que boja ninguém lhe concede, dada a
futilidade do assunto. Desse poema já agora só lhe podemos elogiar a forma.
Coisa semelhante acontece com outra composição do poeta: The Dunciad (O termo não tem tradução portuguesa, mas sem violentar
a índole da língua poderíamos dizer A
Parvoeira) que deliciava com as suas ninharias a alta roda fátua e
superficial daquela época.
Das suas obras
originais as mais sólidas são Essay on
Man (Ensaio sobre o Homem) e Moral
Essays (Ensaios Morais), ambas constituídas de epístolas. Nelas é que o
autor apresentou as suas concepções filosóficas e morais. Digo obras originais porque
não foram traduzidas nem confessadamente imitadas, como as suas admiráveis Imitations of Horacio, mas a verdade é
que as ideias delas já se encontravam em Bolingbroke, e outros corifeus do deísmo
inglês.
Como poeta, no
sentido restrito da palavra, Pope foi pouco menos de medíocre. Como
versificador teu incomparável. Nenhum inglês conseguiu rimar prosa nem melhor,
nem mesmo tão bem como ele. Acontece, porém, que só raramente Pope conseguiu
rimar poesia. Quase tudo o que saiu de sua pena era razoável, equilibrado,
justo, cheio de bom senso, mas era prosaico. Só a magnificência, a correção
excepcional da sua linguagem salvou o olvido mesmo o melhor da sua obra. Quanto
ao resto – o que ele escreveu para se vingar dos inimigos – nem o estilo conseguiu
salvar. Para que se tenha uma ideia da sua forma bastará dizer que até um escritor
universalmente considerado corretíssimo, como Boileau, não atingiu um tão alto
grau de perfeição como Alexander Pope.
Alexander Pope
Pintura de Michael
Dahl
(1688-1744)
Ensaio Sobre a Crítica
Tradução da Marquesa D’Alorna
(LENCASTRE, 1844, p.
69-83)
(I)
Não sei dizer qual
mostra menos arte,
Se quem escreve mal,
se quem mal julga;
Entre ambos, menos risco
há, menos dana
O que me cansa que
esse que me engana:
Dos primeiros há
poucos, muitos destes;
Por um que escreve
mal, dez mal censuram:
Um néscio a si
somente expõe, rimando;
Mas este em verso,
vale dez em prosa.
Gomo os relógios são
nossos juízos;
Nenhum vai certo, e
todos creem no próprio.
No vate engenho
genuíno é raro;
É mais raro entre os
Críticos o gosto:
Uns e outros do Céu
precisam luzes;
Críticos nascem, bem
como os Poetas.
Os excelentes só,
outros ensinem;
E só quem bem compõe,
livre censure.
Autores parciais do
próprio gênio
Pode haver, é
verdade; mas é menos
Parcial do que opina,
quem critica?
Se de perto
observarmos, acharemos
Que da Crítica o
germe na alma existe:
Certo clarão despende
a natureza;
Linhas ligeiras
traça, mas direitas;
Esboço tênue, porém
bem traçado,
Que se esperdiça mal
iluminado.
Falso saber bom senso
desfigura:
No labirinto das
escolas quantos
Desvairando se
perdem! quantos outros,
Que a natureza fez
tolos somente,
Presumindo de si,
mais asnos ficam!
Em busca de juízo a
razão perdem,
E por desculpa, em
Críticos se tornam:
Igual fogo os agita,
os incendeia,
Ou possam, ou não
possam, sempre escrevem,
Com a raiva de um
rival, ou com o ciúme
De um custódio das
belas do serralho.
Têm comichão
d'escarnecer os tolos,
De estar da parte de
quem ri, ou ladra.
Se Mévio escreve
contra o jus de Apollo,
Há quem julgue pior
do que ele escreve.
Alguns, antes de
serem vates, foram
Por homens de juízo
reputados;
Deram-se à Crítica, e
asnos ser provaram.
Como as mulas, nem
asnos nem cavalos,
Outros nem são
sensatos, nem censores.
Esses pedantes, semissábios,
praga
Que em cardumes abafa
nossas ilhas,
Quais nas margens do
Nilo esses insetos
Que encontramos
informes, incompletos,
De equivoca
estrutura; ninguém sabe
Que nome dar a tantas
meias coisas:
Nomeá-las, requer
umas cem línguas;
Mas a de um tolo há
de estafar cem homens.
Ó vós, que buscais
dar, merecer fama,
Alcançar de Censor o
nobre nome,
Avistai os limites
até onde
O gênio, o gosto, o
saber vosso chega:
Não vos lanceis além,
sede prudentes;
Fixai bem esse ponto
em que se encontram
Senso e tolice,
transgredindo a meta.
As coisas têm limites
próprios, todas,
Com os quais
sabiamente a Natureza
Quebra a esperteza vã
do presumido.
Bem como em terras
onde o mar, ganhando,
Deixa areais estéreis,
noutras charcos;
Na alma onde a memória
predomina,
O poder do intelecto
desfalece;
Se a fantasia cálida
vagueia,
Da memória as
espécies brandas fogem.
Uma ciência pede um gênio
inteiro:
Tão vasta é arte, e
curta a mente humana;
Limitada não só a
certas artes,
Mas nessas mesmas só
capaz de partes.
Perdemos como os
Reis, essas conquistas
Que fizeram vaidosos,
só guiados
Pela estulta ambição
de fazer muitas:
Manda bem cada qual
sua província,
Se se acomoda àquilo
só que entende.
Pelos marcos que pôs a
Natureza
Formai vosso juízo,
segui esta:
É sempre a mesma,
certa, invariável;
Com luz universal em
tudo brilha;
Vida, força e beleza
nos reparte,
Que são origem, fim e
prova da Arte.
Esta, só deste fundo
se alimenta;
Preside às obras
simples e singela:
Assim num corpo belo
uma alma sabia
Nutre de espírito e
vigor o todo,
Sustenta o nervo,
guia os movimentos;
Não se vê, nos
efeitos se percebe.
Alguns, a quem o Céu
deu muito engenho,
Tanto mais devem
consultá-lo atentos;
O juízo e a razão ás
vezes brigam,
Intentando ajudar-se;
assim disputam
Um marido e mulher,
se ambos governam.
Não quer esporas o
cavalo alado,
A rédea basta; e
quando a Musa corre,
Contenha a fúria, mas
provoque a pressa:
Pégaso, qual ginete
generoso,
Mais brio mostra, se
o reprime o freio.
Não legou, descobriu
a Antiguidade
Essas regras que
estão na Natureza;
São Natureza, o método
a restringe;
Bem como se restringe
a Liberdade
Com as mesmas leis
que a Liberdade cria.
Observai como a sábia
Grécia indica
As suas úteis regras;
como e quando
Reprimir, animar se
deve o voo:
Do tope do Parnaso
aos filhos mostra
As difíceis veredas
que trilharam;
Com os prêmios imortais
do alto acena,
Força a subir esses
degraus quem teme:
Tira preceitos só de
exemplos grandes,
E deles colhe o que
eles do Céu colhem.
O generoso Crítico ao
Poeta
Somente abana o fogo;
ao mundo ensina
A louvar com razão o
que é louvável.
Serve a Crítica à Musa
de criada,
Que a veste e adorna
e faz parecer mais bela:
Mas se desta intenção
alguém se aparta,
Se corteja a criada,
e deixa a dama;
Se as armas viram só
contra os Poetas,
Aborrecendo assim
quem os ensina,
São como os
Boticários, que estudando
A ciência que têm
pelas receitas,
O papel de doutores
representam;
Atrevidos na prática
dos erros,
Receitam, matam, e
dizem mal dos mestres
Alguns tasquinham,
roem folhas antigas,
Nem o tempo, nem
traça destrói tanto:
Privados de invenção,
na insulsa forma
De planos pecos,
outros nos fabricam
Receitas tolas de
compor poemas;
De fofa erudição
fazendo alarde,
Põem de parte o
sentido quando explicam,
Ou de tal modo
explicam, que este foge.
Vós cujo entendimento
bem navega,
Julgai bem dos
antigos o caráter;
Em cada folha
discerni com gosto
A fábula, o assunto,
o fim proposto;
Religião, paz, gênio
da idade:
Sem ter nisto, a um
tempo, os olhos fitos,
Invectivar podeis,
criticar nunca.
Vosso estudo e
deleite as obras sejam
Do vate Homero, do
Parnaso gloria;
Lede-o de dia, á
noite meditai-o;
Por ele modelai vosso
juízo,
Tirai máximas dele
que vos levem
Até á origem da Castália
fonte.
Lede, relede o texto;
comparai-o
Consigo mesmo; e logo
depois seja
A Mantuana Musa seu
comento.
Quando na mente imensa
o moço Maro
Primeiro desenhou
obra tão rara,
Que havia durar mais
que a imortal Roma,
Parecia talvez que
desprezando
Da Crítica os
preceitos, só queria
As fontes esgotar da
Natureza:
Mas depois, quando viu
parte por parte
O que tinha composto,
e a gentileza,
Viu que era o mesmo
Homero e Natureza.
Convencido, o
desígnio audaz reprime;
Estritamente ás
regras se conforma,
E a trabalhosa empresa
continua
Bem como se presente
o Estagirita
Atento presidisse a
cada linha.
A justa estima das
antigas regras
Daqui se aprenda;
Natureza imita
Só quem as segue,
quem imita Homero.
Belezas há que as
regras não declaram,
Que nascem de ventura
e de cuidado.
Musica e Poesia se
assemelham;
Graças sem nome e sem
lições têm ambas,
Que só atinge mão de
mestre, ás vezes.
Se onde as regras não
chegam quanto basta,
(Pois são método só
de encher assumptos)
Uma feliz licença
corresponde
Ao intento, então é
regra a licença.
Pégaso assim, para
encurtar caminho,
Foge atrevido da
trilhada senda,
Do limite vulgar
audaz se afasta,
E ganha graça além do
alcance da arte;
A qual, sem respeitar
censuras, vence
Os corações, e chega
ao fim de um salto.
Fora da ordem natural
das coisas
Algumas há de que o
prospecto agrada;
Informes rochas, precipícios, grutas.
Grandes gênios tombem
erram com glória,
Fazem erros que a Crítica
respeita.
Mas se os antigos às
leis próprias faltam,
(Como Reis que
revogam leis que fazem)
Vós, modernos,
sentido! Se é preciso
Pecar contra o
preceito, seu fim sempre
Vos esteja presente,
em transgredindo:
Sejam raras as vezes,
e forçadas,
Justificadas por
exemplos grandes.
De outra sorte, sem
freio, e sem remorso,
Da vossa fama a Crítica
se apossa,
Prossegue, e suas
leis com força alega.
Bem sei que alguns,
com presumida ideia,
Esses rasgos sublimes
erros chamam;
Que as figuras ao
perto, ou destacadas,
Monstros e informes
coisas lhes parecem,
Às quais, no seu
lugar e luz expostas,
A devida distancia
concilia,
Com a forma bela,
graças e harmonia.
Nem sempre desenvolve
um Chefe sábio
Igualmente nos renques
poder e arreio;
Com seu tempo e lugar
os proporciona;
Encobre a sua força;
e mesmo às vezes,
Por mais dissimular,
finge uma fuga.
Estratagemas há que
erros parecem;
Não cabeceia Homero;
nós sonhamos.
De louros verdes inda
ornados vemos
Os antigos altares;
não lhes chega
Nem sacrílega mão,
nem voraz fogo;
Da cólera feroz da
Inveja isentos,
Da Guerra e Tempo
gastador seguros.
Vede os Sábios, que
vem trazendo incensos
De cada clima: os Pæans
aprovadores
Atentos escutai nas
línguas varias!
Resoe em cada voz tão
justo a p pia uso,
E do gênero humano o
coro se encha.
Salve, ó Bardos
sublimes, triunfantes,
Que nascestes em dias
mais ditosos!
Herdeiros imortais do
geral prêmio!
Cujas honras com o
tempo vão crescendo,
Como engrossam
torrentes que se aumentam
Á medida que as
terras vão lavando:
Vossos nomes
potentes, hão de ouvi-los
Nações que hão de
nascer; hão de aplaudi-los
Mundos que inda não
foram descobertos.
Desse fogo celeste
uma faísca
Venha inflamar a débil,
triste Alcipe,
Que adejando de longe
quer seguir-vos;
Que arde quando vos
lê, treme se escreve
Para ensinar aos gênios
presumidos
A ciência, que pouco
se conhece,
De apreciar talentos
superiores,
E com modéstia
duvidar dos próprios.
Referências:
LENCASTRE, D. Leonor D’Almeida P. L. (Marquesa
D’Alorna, Condessa D’Assumar e D’Oeynhausen). Obras poéticas. Tomo V. Edição bilínguue. Lisboa, PT: Imprensa
Nacional, 1844.
MESQUITA, Ary de (Seleção, prefácio e
notas). O Livro de ouro da poesia
universal: 30 séculos de poesia do século IX a.c. até o século XX.
Antologia. Rio de Janeiro, RJ: Tecnoprint/Ediouro, 1988.
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