Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 31 de março de 2015

Alexander Pope - Ensaio sobre a Crítica

Temos aqui uma extensa postagem com a primeira das três seções do “Ensaio sobre a Crítica”, do inglês Alexander Pope. A tradução que apresentamos – e o seu original –, podem ser obtidos integralmente neste endereço eletrônico.

O ensaio, a rigor, apesar de ter a forma de um longo poema, com rimas e métrica, expressa-se como se prosa fosse, o que não deixa de surpreender o leitor, haja vista que os ensaios, modo geral, costumam ter forma livre, alguns a configurar livros inteiros.

Mas o que importa mesmo é a pertinência dos argumentos de Pope, bem assim a maravilhosa transposição feita ao português pela lusitana Marquesa D’Alorna, que, como se afirma do frontispício da obra (LENCASTRE, 1844), era conhecida entre os poetas portugueses pelo nome de Alcipe.

J.A.R. – H.C.

Alexander Pope
Apresentação de Ary de Mesquita
(MESQUITA, 1988, p. 188-189)

Alexander Pope, ilustre poeta inglês, nasceu em Londres a 21 de maio de 1688, e morreu no dia 30 de maio de 1744 em Twickenham.
Aos oito anos de idade, sob a orientação de um padre, aprendeu os rudimentos de latim, grego e história. Sendo, desde criança, muito doente, e impossibilitado de traquinar com os meninos de sua idade, Pope, por índole amigo das letras, transformou os estudos em único entretenimento, Um dos seus passatempos favoritos era o de traduzir os grandes clássicos da antiguidade. Mais tarde, quando já literato, traduziu de Ovídio o episódio de Safo e Faon e a fábula de Dríope, e de Homero a Ilíada e a Odisseia etc.
Aos dezesseis anos escreveu quatro “Pastorais” cuja correção e elegância revelam a mão de um artista consumado ao invés de trair a pena de um adolescente. Aos vinte e um anos, isto é, no princípio da vida, compôs o Essay on Criticism (Ensaio sobre a Crítica), que é uma obra notável. Começou, por assim dizer, como outros acabaram, pois, tanto a Arte Poética de Horácio, como a de Boileau, e a de Vauquelin de La Fresnaye etc., são obras da maturidade. Os verdes anos com que Pope compôs a sua Arte Poética (esse nome também caberia ao seu Ensaio Sobre a Crítica) não o impediram de lhe dar uma forma elegante e corretíssima, e de recheá-la de mais graça e leveza do que, antes, Boileau fizera com a sua. No gênero lírico, que não era o seu forte, Pope deixou uma linda amostra: Eloisa to Abelard, poemeto em que a grande amorosa francesa narra poeticamente o seu desventurado amor, a sua revolta e os seus infortúnios.
Entre as mais célebres produções de Pope é necessário citar The Rape of the Locke (O Rapto da Madeixa), a que o próprio autor e os seus coetâneos deram uma importância que boja ninguém lhe concede, dada a futilidade do assunto. Desse poema já agora só lhe podemos elogiar a forma. Coisa semelhante acontece com outra composição do poeta: The Dunciad (O termo não tem tradução portuguesa, mas sem violentar a índole da língua poderíamos dizer A Parvoeira) que deliciava com as suas ninharias a alta roda fátua e superficial daquela época.
Das suas obras originais as mais sólidas são Essay on Man (Ensaio sobre o Homem) e Moral Essays (Ensaios Morais), ambas constituídas de epístolas. Nelas é que o autor apresentou as suas concepções filosóficas e morais. Digo obras originais porque não foram traduzidas nem confessadamente imitadas, como as suas admiráveis Imitations of Horacio, mas a verdade é que as ideias delas já se encontravam em Bolingbroke, e outros corifeus do deísmo inglês.
Como poeta, no sentido restrito da palavra, Pope foi pouco menos de medíocre. Como versificador teu incomparável. Nenhum inglês conseguiu rimar prosa nem melhor, nem mesmo tão bem como ele. Acontece, porém, que só raramente Pope conseguiu rimar poesia. Quase tudo o que saiu de sua pena era razoável, equilibrado, justo, cheio de bom senso, mas era prosaico. Só a magnificência, a correção excepcional da sua linguagem salvou o olvido mesmo o melhor da sua obra. Quanto ao resto – o que ele escreveu para se vingar dos inimigos – nem o estilo conseguiu salvar. Para que se tenha uma ideia da sua forma bastará dizer que até um escritor universalmente considerado corretíssimo, como Boileau, não atingiu um tão alto grau de perfeição como Alexander Pope.

Alexander Pope
Pintura de Michael Dahl
(1688-1744)

Ensaio Sobre a Crítica
­Tradução da Marquesa D’Alorna
(LENCASTRE, 1844, p. 69-83)

(I)

Não sei dizer qual mostra menos arte,
Se quem escreve mal, se quem mal julga;
Entre ambos, menos risco há, menos dana
O que me cansa que esse que me engana:
Dos primeiros há poucos, muitos destes;
Por um que escreve mal, dez mal censuram:
Um néscio a si somente expõe, rimando;
Mas este em verso, vale dez em prosa.

Gomo os relógios são nossos juízos;
Nenhum vai certo, e todos creem no próprio.
No vate engenho genuíno é raro;
É mais raro entre os Críticos o gosto:
Uns e outros do Céu precisam luzes;
Críticos nascem, bem como os Poetas.
Os excelentes só, outros ensinem;
E só quem bem compõe, livre censure.
Autores parciais do próprio gênio
Pode haver, é verdade; mas é menos
Parcial do que opina, quem critica?

Se de perto observarmos, acharemos
Que da Crítica o germe na alma existe:
Certo clarão despende a natureza;
Linhas ligeiras traça, mas direitas;
Esboço tênue, porém bem traçado,
Que se esperdiça mal iluminado.
Falso saber bom senso desfigura:
No labirinto das escolas quantos
Desvairando se perdem! quantos outros,
Que a natureza fez tolos somente,
Presumindo de si, mais asnos ficam!
Em busca de juízo a razão perdem,
E por desculpa, em Críticos se tornam:
Igual fogo os agita, os incendeia,
Ou possam, ou não possam, sempre escrevem,
Com a raiva de um rival, ou com o ciúme
De um custódio das belas do serralho.
Têm comichão d'escarnecer os tolos,
De estar da parte de quem ri, ou ladra.
Se Mévio escreve contra o jus de Apollo,
Há quem julgue pior do que ele escreve.

Alguns, antes de serem vates, foram
Por homens de juízo reputados;
Deram-se à Crítica, e asnos ser provaram.
Como as mulas, nem asnos nem cavalos,
Outros nem são sensatos, nem censores.
Esses pedantes, semissábios, praga
Que em cardumes abafa nossas ilhas,
Quais nas margens do Nilo esses insetos
Que encontramos informes, incompletos,
De equivoca estrutura; ninguém sabe
Que nome dar a tantas meias coisas:
Nomeá-las, requer umas cem línguas;
Mas a de um tolo há de estafar cem homens.

Ó vós, que buscais dar, merecer fama,
Alcançar de Censor o nobre nome,
Avistai os limites até onde
O gênio, o gosto, o saber vosso chega:
Não vos lanceis além, sede prudentes;
Fixai bem esse ponto em que se encontram
Senso e tolice, transgredindo a meta.
As coisas têm limites próprios, todas,
Com os quais sabiamente a Natureza
Quebra a esperteza vã do presumido.

Bem como em terras onde o mar, ganhando,
Deixa areais estéreis, noutras charcos;
Na alma onde a memória predomina,
O poder do intelecto desfalece;
Se a fantasia cálida vagueia,
Da memória as espécies brandas fogem.
Uma ciência pede um gênio inteiro:
Tão vasta é arte, e curta a mente humana;
Limitada não só a certas artes,
Mas nessas mesmas só capaz de partes.
Perdemos como os Reis, essas conquistas
Que fizeram vaidosos, só guiados
Pela estulta ambição de fazer muitas:
Manda bem cada qual sua província,
Se se acomoda àquilo só que entende.

Pelos marcos que pôs a Natureza
Formai vosso juízo, segui esta:
É sempre a mesma, certa, invariável;
Com luz universal em tudo brilha;
Vida, força e beleza nos reparte,
Que são origem, fim e prova da Arte.
Esta, só deste fundo se alimenta;
Preside às obras simples e singela:
Assim num corpo belo uma alma sabia
Nutre de espírito e vigor o todo,
Sustenta o nervo, guia os movimentos;
Não se vê, nos efeitos se percebe.
Alguns, a quem o Céu deu muito engenho,
Tanto mais devem consultá-lo atentos;
O juízo e a razão ás vezes brigam,
Intentando ajudar-se; assim disputam
Um marido e mulher, se ambos governam.
Não quer esporas o cavalo alado,
A rédea basta; e quando a Musa corre,
Contenha a fúria, mas provoque a pressa:
Pégaso, qual ginete generoso,
Mais brio mostra, se o reprime o freio.

Não legou, descobriu a Antiguidade
Essas regras que estão na Natureza;
São Natureza, o método a restringe;
Bem como se restringe a Liberdade
Com as mesmas leis que a Liberdade cria.

Observai como a sábia Grécia indica
As suas úteis regras; como e quando
Reprimir, animar se deve o voo:
Do tope do Parnaso aos filhos mostra
As difíceis veredas que trilharam;
Com os prêmios imortais do alto acena,
Força a subir esses degraus quem teme:
Tira preceitos só de exemplos grandes,
E deles colhe o que eles do Céu colhem.

O generoso Crítico ao Poeta
Somente abana o fogo; ao mundo ensina
A louvar com razão o que é louvável.
Serve a Crítica à Musa de criada,
Que a veste e adorna e faz parecer mais bela:
Mas se desta intenção alguém se aparta,
Se corteja a criada, e deixa a dama;
Se as armas viram só contra os Poetas,
Aborrecendo assim quem os ensina,
São como os Boticários, que estudando
A ciência que têm pelas receitas,
O papel de doutores representam;
Atrevidos na prática dos erros,
Receitam, matam, e dizem mal dos mestres
Alguns tasquinham, roem folhas antigas,
Nem o tempo, nem traça destrói tanto:
Privados de invenção, na insulsa forma
De planos pecos, outros nos fabricam
Receitas tolas de compor poemas;
De fofa erudição fazendo alarde,
Põem de parte o sentido quando explicam,
Ou de tal modo explicam, que este foge.

Vós cujo entendimento bem navega,
Julgai bem dos antigos o caráter;
Em cada folha discerni com gosto
A fábula, o assunto, o fim proposto;
Religião, paz, gênio da idade:
Sem ter nisto, a um tempo, os olhos fitos,
Invectivar podeis, criticar nunca.
Vosso estudo e deleite as obras sejam
Do vate Homero, do Parnaso gloria;
Lede-o de dia, á noite meditai-o;
Por ele modelai vosso juízo,
Tirai máximas dele que vos levem
Até á origem da Castália fonte.
Lede, relede o texto; comparai-o
Consigo mesmo; e logo depois seja
A Mantuana Musa seu comento.

Quando na mente imensa o moço Maro
Primeiro desenhou obra tão rara,
Que havia durar mais que a imortal Roma,
Parecia talvez que desprezando
Da Crítica os preceitos, só queria
As fontes esgotar da Natureza:
Mas depois, quando viu parte por parte
O que tinha composto, e a gentileza,
Viu que era o mesmo Homero e Natureza.
Convencido, o desígnio audaz reprime;
Estritamente ás regras se conforma,
E a trabalhosa empresa continua
Bem como se presente o Estagirita
Atento presidisse a cada linha.
A justa estima das antigas regras
Daqui se aprenda; Natureza imita
Só quem as segue, quem imita Homero.

Belezas há que as regras não declaram,
Que nascem de ventura e de cuidado.
Musica e Poesia se assemelham;
Graças sem nome e sem lições têm ambas,
Que só atinge mão de mestre, ás vezes.
Se onde as regras não chegam quanto basta,
(Pois são método só de encher assumptos)
Uma feliz licença corresponde
Ao intento, então é regra a licença.
Pégaso assim, para encurtar caminho,
Foge atrevido da trilhada senda,
Do limite vulgar audaz se afasta,
E ganha graça além do alcance da arte;
A qual, sem respeitar censuras, vence
Os corações, e chega ao fim de um salto.
Fora da ordem natural das coisas
Algumas há de que o prospecto agrada;
Informes rochas, precipícios, grutas.
Grandes gênios tombem erram com glória,
Fazem erros que a Crítica respeita.
Mas se os antigos às leis próprias faltam,
(Como Reis que revogam leis que fazem)
Vós, modernos, sentido! Se é preciso
Pecar contra o preceito, seu fim sempre
Vos esteja presente, em transgredindo:
Sejam raras as vezes, e forçadas,
Justificadas por exemplos grandes.
De outra sorte, sem freio, e sem remorso,
Da vossa fama a Crítica se apossa,
Prossegue, e suas leis com força alega.

Bem sei que alguns, com presumida ideia,
Esses rasgos sublimes erros chamam;
Que as figuras ao perto, ou destacadas,
Monstros e informes coisas lhes parecem,
Às quais, no seu lugar e luz expostas,
A devida distancia concilia,
Com a forma bela, graças e harmonia.
Nem sempre desenvolve um Chefe sábio
Igualmente nos renques poder e arreio;
Com seu tempo e lugar os proporciona;
Encobre a sua força; e mesmo às vezes,
Por mais dissimular, finge uma fuga.
Estratagemas há que erros parecem;
Não cabeceia Homero; nós sonhamos.

De louros verdes inda ornados vemos
Os antigos altares; não lhes chega
Nem sacrílega mão, nem voraz fogo;
Da cólera feroz da Inveja isentos,
Da Guerra e Tempo gastador seguros.
Vede os Sábios, que vem trazendo incensos
De cada clima: os Pæans aprovadores
Atentos escutai nas línguas varias!
Resoe em cada voz tão justo a p pia uso,
E do gênero humano o coro se encha.
Salve, ó Bardos sublimes, triunfantes,
Que nascestes em dias mais ditosos!
Herdeiros imortais do geral prêmio!
Cujas honras com o tempo vão crescendo,
Como engrossam torrentes que se aumentam
Á medida que as terras vão lavando:
Vossos nomes potentes, hão de ouvi-los
Nações que hão de nascer; hão de aplaudi-los
Mundos que inda não foram descobertos.
Desse fogo celeste uma faísca
Venha inflamar a débil, triste Alcipe,
Que adejando de longe quer seguir-vos;
Que arde quando vos lê, treme se escreve
Para ensinar aos gênios presumidos
A ciência, que pouco se conhece,
De apreciar talentos superiores,
E com modéstia duvidar dos próprios.

Referências:

LENCASTRE, D. Leonor D’Almeida P. L. (Marquesa D’Alorna, Condessa D’Assumar e D’Oeynhausen). Obras poéticas. Tomo V. Edição bilínguue. Lisboa, PT: Imprensa Nacional, 1844.

MESQUITA, Ary de (Seleção, prefácio e notas). O Livro de ouro da poesia universal: 30 séculos de poesia do século IX a.c. até o século XX. Antologia. Rio de Janeiro, RJ: Tecnoprint/Ediouro, 1988.

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