Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 13 de março de 2015

José Paulo Paes - Porque Me Ufano

A empregar o mesmo título de um famoso livro do Conde de Afonso Celso (1860-1938), editado em 1900, o poeta, ensaísta e tradutor paulista José Paulo Paes reinterpreta os motivos do ufanismo de outrora, os quais, em certa medida, serviram de estímulo aos denominados “movimentos nativistas”.

Paes emprega vocábulos pouco frequentes em suas estrofes, o que, em vista da necessária interpretação verso a verso, força o leitor a excursos ao dicionário, indispensáveis ou não, a depender do vocabulário de cada um. Por isso, apresento logo depois do poema um rápido elucidário, que de algum modo complementa o texto.

A análise atenta do poema deixa transparecer as mesmas críticas castroalvinas à ordem dos jesuítas: tanto quanto uma companhia com aspirações divinas, uma companhia cuja atividade não deixava de perseguir riquezas bem terrenas (rs). Ainda hoje? Será?

Idem, a referência, na 13ª estrofe, ao escritor francês André Gide (1869-1951), homossexual assumido, de quem Paes assinala as práticas sodomitas com jovens mancebos, em notória conexão com a obra “O Imoralista”, de 1902. E por aí vai...

Percorra, internauta, com o prazer de um navegante percuciente, esses mares que vão de costa a costa do poema, e não abstraia a sua derradeira expressão: “cruzeiro insubornável”! Será isso mesmo o que lemos nos interstícios da mente? Tudo é subornável neste país, exceto aquilo que fica fora de nosso alcance? Brincadeira!

J.A.R. – H.C.

José Paulo Paes
(1926-1998)

Porque Me Ufano

A caravela sem vela, testemunho
De antigos navegantes, ora entregues
Ao comércio de secos e molhados.

O cadáver do bugre, embalsamado
Em trecho d’ópera e tropo de retórica,
Amainado o interesse antropológico.

O escravo das senzalas na favela
Batucante, pitoresca, sonorosa,
A musa castroalvina estando morta.

Os mamelucos malucos alistados
Na milícia das fardas amarelas,
Para exemplo dos frágeis Fabianos.

As sotainas jesuítas no cabide,
Cativado o gentio e pleno o cofre
Encourado da santa companhia.

As monjas de Gregório, tão faceiras,
Compelidas ao mister destemeroso
De lecionar burguesas donzelonas.

Ouvidores gerais, enfarpelados
Outrora nas marlotas doutorais,
Ora arbitrando ruidosos ludopédios.

Os bandeirantes heris, continuados
Em capitães de indústria, preterindo
O sertanismo pela mais-valia.

Os bacharéis, cabeça de papel,
Rabo de palha, talim de mosqueteiro,
Salvando a pátria amada sem cobrar.

Os flibusteiros na costa, em diuturna
Vigília à costumeira florescência
Dos capitais plantados no ultramar.

Os fidalgos de prol, ensolarados,
Com chancelada carta de brasão,
Modorrando entre opulentos cafezais.

Literatos de truz, já vacinados
Contra a febre do vil engajamento,
A fenestra das torres-de-marfim.

Os líricos donzéis, atribulados
Por demos gideanos, descobrindo
As primeiras delícias de Sodoma.

Os camareiros eleitos, no timão
Da barca da República, cuidosos
A bússola de vários argentários.

Mas, sal da terra, reverso da medalha,
Balaiadas, Praieiras, Sabinadas,
Palmares, Itambés, Inconfidências.

Tudo ajuizado em boa aferição,
O fruto podre, a rosa ainda em botão,
O sol do grão, a esperança da raiz,

Sob o signo do Cruzeiro insubornável,
Tendo em conta passados e futuros,
Sempre me ufano deste meu país.

Elucidário:

Fabianos – os que advogam um socialismo moderado, gradual, sem revoluções;
Sotainas – batinas de padre;
Enfarpelados – aqueles que estão vestidos com trajes distintos;
Marlotas – capotes curtos com capuz;
Ludopédios – disputas que se jogam com os pés, como o futebol;
Heris – próprios dos senhores em relação aos escravos;
Talim – cinta a tiracolo, da qual pende a espada;
Filibusteiros – piratas, aventureiros;
Truz – diz-se da pessoa ou coisa de valor, distinta, notável;
Fenestra – janela;
Donzéis – homens virgens, puros;
Cuidosos – o mesmo que cuidadoso;
Argentários – homens ricos, capitalistas.

Referência:

PAES, José Paulo. Porque me ufano. In: __________. Melhores poemas. Seleção de Davi Arrigucci Jr. 3. ed. São Paulo: Global, 2000. p. 97-99. (Os Melhores Poemas, 37)

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