A empregar o mesmo título de um famoso livro do Conde de Afonso Celso
(1860-1938), editado em 1900, o poeta, ensaísta e tradutor paulista José Paulo
Paes reinterpreta os motivos do ufanismo de outrora, os quais, em certa medida,
serviram de estímulo aos denominados “movimentos nativistas”.
Paes emprega vocábulos pouco frequentes em suas estrofes, o que, em vista
da necessária interpretação verso a verso, força o leitor a excursos ao
dicionário, indispensáveis ou não, a depender do vocabulário de cada um. Por
isso, apresento logo depois do poema um rápido elucidário, que de algum modo
complementa o texto.
A análise atenta do poema deixa transparecer as mesmas críticas
castroalvinas à ordem dos jesuítas: tanto quanto uma companhia com aspirações
divinas, uma companhia cuja atividade não deixava de perseguir riquezas bem
terrenas (rs). Ainda hoje? Será?
Idem, a referência, na 13ª estrofe, ao escritor francês André Gide
(1869-1951), homossexual assumido, de quem Paes assinala as práticas sodomitas
com jovens mancebos, em notória conexão com a obra “O Imoralista”, de 1902. E
por aí vai...
Percorra, internauta, com o prazer de um navegante percuciente, esses
mares que vão de costa a costa do poema, e não abstraia a sua derradeira expressão:
“cruzeiro insubornável”! Será isso mesmo o que lemos nos interstícios da mente?
Tudo é subornável neste país, exceto aquilo que fica fora de nosso alcance? Brincadeira!
J.A.R. – H.C.
José Paulo Paes
(1926-1998)
Porque Me Ufano
A caravela sem vela,
testemunho
De antigos
navegantes, ora entregues
Ao comércio de secos
e molhados.
O cadáver do bugre,
embalsamado
Em trecho d’ópera e
tropo de retórica,
Amainado o interesse
antropológico.
O escravo das
senzalas na favela
Batucante, pitoresca,
sonorosa,
A musa castroalvina
estando morta.
Os mamelucos malucos
alistados
Na milícia das fardas
amarelas,
Para exemplo dos
frágeis Fabianos.
As sotainas jesuítas
no cabide,
Cativado o gentio e
pleno o cofre
Encourado da santa
companhia.
As monjas de
Gregório, tão faceiras,
Compelidas ao mister
destemeroso
De lecionar burguesas
donzelonas.
Ouvidores gerais,
enfarpelados
Outrora nas marlotas
doutorais,
Ora arbitrando
ruidosos ludopédios.
Os bandeirantes
heris, continuados
Em capitães de
indústria, preterindo
O sertanismo pela
mais-valia.
Os bacharéis, cabeça
de papel,
Rabo de palha, talim
de mosqueteiro,
Salvando a pátria
amada sem cobrar.
Os flibusteiros na
costa, em diuturna
Vigília à costumeira
florescência
Dos capitais plantados
no ultramar.
Os fidalgos de prol,
ensolarados,
Com chancelada carta
de brasão,
Modorrando entre
opulentos cafezais.
Literatos de truz, já
vacinados
Contra a febre do vil
engajamento,
A fenestra das
torres-de-marfim.
Os líricos donzéis,
atribulados
Por demos gideanos,
descobrindo
As primeiras delícias
de Sodoma.
Os camareiros
eleitos, no timão
Da barca da
República, cuidosos
A bússola de vários
argentários.
Mas, sal da terra,
reverso da medalha,
Balaiadas, Praieiras,
Sabinadas,
Palmares, Itambés,
Inconfidências.
Tudo ajuizado em boa
aferição,
O fruto podre, a rosa
ainda em botão,
O sol do grão, a
esperança da raiz,
Sob o signo do
Cruzeiro insubornável,
Tendo em conta
passados e futuros,
Sempre me ufano deste
meu país.
Elucidário:
Fabianos – os que advogam um socialismo
moderado, gradual, sem revoluções;
Sotainas – batinas de padre;
Enfarpelados – aqueles que estão vestidos
com trajes distintos;
Marlotas – capotes curtos com capuz;
Ludopédios – disputas que se jogam com
os pés, como o futebol;
Heris – próprios dos senhores em
relação aos escravos;
Talim – cinta a tiracolo, da qual pende
a espada;
Filibusteiros – piratas, aventureiros;
Truz – diz-se da pessoa ou coisa de
valor, distinta, notável;
Fenestra – janela;
Donzéis – homens virgens, puros;
Cuidosos – o mesmo que cuidadoso;
Argentários – homens ricos,
capitalistas.
Referência:
PAES, José Paulo. Porque me ufano. In:
__________. Melhores poemas. Seleção
de Davi Arrigucci Jr. 3. ed. São Paulo: Global, 2000. p. 97-99. (Os Melhores
Poemas, 37)
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