Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 4 de março de 2015

Augusto dos Anjos - Sonetos

Trazemos aos finos apreciadores das letras, quatro sonetos do poeta paraibano Augusto dos Anjos, nenhum deles entre os seus mais conhecidos, como “Versos Íntimos” e “Psicologia de um Vencido”.

A poesia de Augusto dos Anjos não é pronunciadamente aderente a nenhuma das escolas das quais foi contemporâneo, como sejam, a simbolista e a parnasiana. Cheia de  termos científicos, com recorrentes imagens de sofrimento e de morte, ela paira numa instância quase inacessível, deixando o leitor em situação meio difícil para recitá-la de modo desembaraçado.

Ou será que afirmo isso porque me encontro já meio disléxico?! (rs).

J.A.R. – H.C.

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

O Martírio do Artista

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Ideia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz, e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!

(ANJOS, 2001, p. 32)

Imersa em Pensamentos (Sozinha)
Jakub Schikaneder: pintor tcheco
(1855-1924)

Minha Finalidade

Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!

Predeterminação imprescritível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!

Na canonização emocionante
Da dor humana, sou maior que Dante,
– A águia dos latifúndios florentinos!

Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno,
A fórmula de todos os destinos!

(ANJOS, 2001, p. 69)

No Necrotério
Jakub Schikaneder: pintor tcheco
(1855-1924)

Vítima do Dualismo

Ser miserável dentre os miseráveis
– Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiossincrasias!

Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!

Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo...
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,

Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!

(ANJOS, 2001, p. 73)

Funeral
Jakub Schikaneder: pintor tcheco
(1855-1924)

Noturno

Chove. Lá fora os lampiões escuros
Semelham monjas a morrer... Os ventos
Desencadeados vão bater, violentos,
De encontro às torres e de encontro aos muros.

Saio de casa. Os passos mal seguros
Trêmulo movo, mas meus movimentos
Susto, diante do vulto dos conventos,
Negro, ameaçando os séculos futuros!

De São Francisco no plangente bronze
Em badaladas compassadas onze
Horas soaram... Surge agora a Lua.

E eu sonho erguer-me aos páramos etéreos
Enquanto a chuva cai nos cemitérios
E o vento apaga os lampiões da rua!

(ANJOS, 2001, p. 168)

Referência:

ANJOS, Augusto dos. Todos os sonetos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2001. (L&PM Pocket, nº 83)

Nenhum comentário:

Postar um comentário