Trazemos aos finos apreciadores das letras, quatro sonetos do poeta
paraibano Augusto dos Anjos, nenhum deles entre os seus mais conhecidos, como “Versos Íntimos” e “Psicologia de um
Vencido”.
A poesia de Augusto dos Anjos não é pronunciadamente aderente a nenhuma
das escolas das quais foi contemporâneo, como sejam, a simbolista e a parnasiana. Cheia de termos científicos, com recorrentes imagens
de sofrimento e de morte, ela paira numa instância quase inacessível, deixando o
leitor em situação meio difícil para recitá-la de modo desembaraçado.
Ou será que afirmo isso porque me encontro já meio disléxico?! (rs).
J.A.R. – H.C.
Augusto dos Anjos
(1884-1914)
O Martírio do Artista
Arte ingrata! E
conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal
dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o
pensamento
Que em suas fronetais
células guarda!
Tarda-lhe a Ideia! A
inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer,
rasga o papel, violento,
Como o soldado que
rasgou a farda
No desespero do
último momento!
Tenta chorar e os
olhos sente enxutos!...
É como o paralítico
que, à míngua
Da própria voz, e na
que ardente o lavra
Febre de em vão
falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e
repuxa a língua,
E não lhe vem à boca
uma palavra!
(ANJOS, 2001, p. 32)
Imersa em Pensamentos (Sozinha)
Jakub Schikaneder: pintor tcheco
(1855-1924)
Minha Finalidade
Turbilhão teleológico
incoercível,
Que força alguma
inibitória acalma,
Levou-me o crânio e
pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam
apreender o Inapreensível!
Predeterminação
imprescritível
Oriunda da
infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou,
talhou minha alma
Para cantar de
preferência o Horrível!
Na canonização
emocionante
Da dor humana, sou
maior que Dante,
– A águia dos
latifúndios florentinos!
Sistematizo, soluçando,
o Inferno...
E trago em mim, num
sincronismo eterno,
A fórmula de todos os
destinos!
(ANJOS, 2001, p. 69)
No Necrotério
Jakub Schikaneder:
pintor tcheco
(1855-1924)
Vítima do Dualismo
Ser miserável dentre
os miseráveis
– Carrego em minhas
células sombrias
Antagonismos
irreconciliáveis
E as mais opostas
idiossincrasias!
Muito mais cedo do
que o imagináveis
Eis-vos, minha alma,
enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos
implacáveis
E à gula negra das
antinomias!
Psiquê biforme, o Céu
e o Inferno absorvo...
Criação a um tempo
escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais
variáveis elementos,
Ceva-se em minha
carne, como um corvo,
A simultaneidade
ultramonstruosa
De todos os
contrastes famulentos!
(ANJOS, 2001, p. 73)
Funeral
Jakub Schikaneder:
pintor tcheco
(1855-1924)
Noturno
Chove. Lá fora os
lampiões escuros
Semelham monjas a
morrer... Os ventos
Desencadeados vão
bater, violentos,
De encontro às torres
e de encontro aos muros.
Saio de casa. Os
passos mal seguros
Trêmulo movo, mas
meus movimentos
Susto, diante do
vulto dos conventos,
Negro, ameaçando os
séculos futuros!
De São Francisco no
plangente bronze
Em badaladas
compassadas onze
Horas soaram... Surge
agora a Lua.
E eu sonho erguer-me
aos páramos etéreos
Enquanto a chuva cai
nos cemitérios
E o vento apaga os
lampiões da rua!
(ANJOS, 2001, p. 168)
Referência:
ANJOS, Augusto dos. Todos os sonetos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2001. (L&PM
Pocket, nº 83)
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