Um dia com um escritor-poeta brasileiro –
Machado de Assis –, outro dia com um escritor-poeta português – Jorge de Sena.
Como a vida, desse modo, sucede maravilhosamente bem! Leve como a brisa suave
na campina, em máxima sintonia com a natureza.
E com Sena extraindo poesia da entronizada
música de Beethoven, a beleza atinge os píncaros da glória. Faremos assim:
parodiando aquelas propagandas massivas ao estilo “Leia o livro e veja o
filme”, propomos a parelha “Leia o poema e ouça a música”, mais abaixo, com a
missa selecionada por Sena sob a batuta do maestro suíço Thierry Fischer.
Entre em êxtase com tanta harmonia,
leitor-ouvinte!
J.A.R. – H.C.
Jorge de Sena
(1919-1978)
Missa Solene, Op. 123, de Beethoven
Não é solene esta música,
ao contrário do nome e da intenção.
Clamores portentosos, violência obsessiva
(por sob apelos doces, lacrimosos)
de um ritmo orquestral continuado,
tanta paixão gritada, tanto contraponto
que teimosamente impede que na tessitura
das vozes e dos timbres se interponha hiato
não de silêncio mas de um fio só
de melodia, por onde a morte
penetre interrompendo a vida.
É medo, um medo-orgulho, feito
de solidão e de desconfiança. Não
piedosa tentativa para captar um Deus,
ou ardente anseio de união com Ele.
Não é também, com tanta majestade,
a exigência de que Ele exista,
porque o mereça quem assim O inventa.
É um medo comovente de que O não haja
para remissão dos pecados, bálsamo
das feridas, consolo
das amarguras, dádiva
do que se não teve nunca
ou se perdeu para sempre. É
desejo ansioso de que um Agnus Dei
se interponha (ao contrário da morte) mediador
e humano
entre um nada feito música
e outro possivelmente Deus.
E a esperança desesperada de que seja
uma grandeza nossa quanto fique,
de pé, no intervalo entre ambos.
(2 Nov. 64)
Em: “Arte de Música”, de 1968.
Missa Solene in D Maior -
Op. 123
Ludwig
van Beethoven
Referência:
SENA, Jorge de. Missa solene, op. 123, de
Beethoven. In: __________. Versos e alguma prosa de Jorge de Sena.
Prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa. Lisboa (PT): Arcádia e Moraes,
1979. p. 82.
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