Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 25 de março de 2015

Herberto Hélder - Poemacto (IV)

Fazemos aqui uma homenagem ao grande poeta português Herberto Hélder, falecido anteontem, 23.3.2015. Nascido em Funchal, Ilha da Madeira, em 1930, viveu por 84 anos para deixar-nos uma obra marcante, com tendência a manter-se no futuro, em especial, pensamos nós, pelo poder visionário de seus poemas.

A quarta volta do “Poemacto”, abaixo transcrita, ilustra à perfeição o que afirmamos: há a necessidade de se recriar o que o Eterno criou, dar de comer as estrelas às vacas, revolver a ordem, “ser truculento” com a arquitetura das coisas postas, passando-as de assim a assado. Tudo para ativar a inteligência, incomodá-la, removê-la de sua zona de conforto.

Fica a dor da perda de um poeta maior. É como se o ‘corpus’ da própria poesia experimentasse um descaminho. Vá poeta pelas planuras sem fim: faça de sua alma um estilo “precisamente original” de inteligência celeste.

J.A.R. – H.C.

Herberto Helder
(23.11.1930-23.3.2015)

Poemacto (IV)

As vacas dormem, as estrelas são truculentas,
a inteligência é cruel.
Eu abro para o lado dos campos.
Vejo como estou minado por esse
puro movimento de inteligência. Porque olho,
rodo nos gonzos como para a felicidade.
Mais levantadas são as arbitrarias ervas
do que as estrelas.
Tudo dorme nas vacas.
Oh violenta inteligência onde as coisas
levitam preciosamente.
O campo bate contra mim, no ar onde elas
dormem –
vacas truculentas, estrelas
apaziguadas estrelas – e a inteligência, afinal
selvajaria celeste sobre a minha respiração.

Eu penso em mudar estes campos deitados, criar
um nome para as coisas.
Onde era estábulo, na doce morfologia
fazer
com que as estrelas mugissem e as poeiras
ressuscitassem.
Dizer: rebentem os taludes, enlouqueçam as vacas,
que a minha inteligência se torne terrífica.
Unir a ferocidade da noite ao inebriado
movimento da terra.
Posso mudar a arquitectura de uma palavra.
Fazer explodir o descido coração das coisas.
Posso meter um nome na intimidade de uma coisa
e recomeçar o talento de existir.
Meto na palavra o coração carregado de uma coisa.
Eu posso modificar-me.
Ser mais alto que a corrupção.

Campos abanados pelo silêncio. Alguém como eu
mergulhando no que é obscuro
das vacas dormindo.
Estrelas giradas, de repente mortas
sobre mim. Penso alterar tudo,
recuperar agora as colinas do mundo.
Falando de amor, eu falo
do génio destruidor. Falo que é preciso
criar a velocidade das coisas.
Que é preciso caçar flores, golpear as estrelas,
meter o sono nas vacas, desentranhar-lhes
o sono,
dar o sono às estrelas.
Enlouquecer.

Que é preciso recriar o criar, meu Deus, ser truculento.
Ser simples e não o ser.
Abandonar os campos, rodopiar
a inteligência, a crueldade.
Abro a porta para não esquecer esta
absurda tarefa.
Esta tão particular necessidade.
Porque agora deixei totalmente de ser puro.
Levanto-me para dar de comer quentes
estrelas às vacas.
Sou tão puro, meu Deus, tão truculento.
É preciso principiar.
Digo baixo o nome. Corto os pés das estrelas.
Deixá-las na sua seiva estremeceste.
Digo baixo que é talento envenená-las.
Minha alegria furibunda é a pureza do mundo.
E é tão belo agarrar com os ossos
que há dentro das mãos
na ponta de um nome, e desdobrá-lo.
Arrancar essa alma apertada.
Porque eu sei o estilo de uma alma
precisamente original.
Corto as estrelas das vacas.
Trago candeias para os campos extraordinários.

Porque eu bato na porta com o meu júbilo furioso.
O amor acumula-se.
É para dar o ardor em doce dissipação.
Deus não sabe e sorri, esmigalhado
contra o muro humano.
Respiro, respiro. As coisas respiram.
Esta oferta masculina vocifera na terra.
Criar é delicado.
Criar é uma grande brutalidade.
Porque eu sou feliz. Durmo
na obra.
Só eu sei que a loucura minou este ser
inexplicável
que me estende nas coisas.
A loucura entrou em cada osso,
e os campos são o meu espelho.
Esta imagem perfeita arromba os espelhos.
Os nomes são loucos,
são verdadeiros.

Referência:

HÉLDER, Herberto. Poemacto (IV). In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 231-233.

2 comentários:

  1. acho que a referência está errada, esse é o Poemacto IV, e não o II... mesmo assim, obrigada pelo compartilhamento dessa linda poesia de Helder, minha favorita!

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    1. Prezado(a): Muito obrigado pela observação. Já retifiquei o número da seção do poema, tal como você me informa e pude ratificar em outro livro onde ela consta. O equívoco foi meu: a obra de referência, ao final da postagem, apresenta apenas duas seções do poema, sem numerá-las, levando-me a supor que a última delas fosse a segunda, o que, como se evidencia, é inexato.
      Um abraço,
      João A. Rodrigues

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