Fazemos aqui uma homenagem ao grande poeta português Herberto
Hélder, falecido anteontem, 23.3.2015. Nascido em Funchal, Ilha da Madeira, em
1930, viveu por 84 anos para deixar-nos uma obra marcante, com tendência a
manter-se no futuro, em especial, pensamos nós, pelo poder visionário de seus
poemas.
A quarta volta do “Poemacto”, abaixo transcrita, ilustra à perfeição o
que afirmamos: há a necessidade de se recriar o que o Eterno criou, dar de
comer as estrelas às vacas, revolver a ordem, “ser truculento” com a arquitetura
das coisas postas, passando-as de assim a assado. Tudo para ativar a inteligência,
incomodá-la, removê-la de sua zona de conforto.
Fica a dor da perda de um poeta maior. É como se o ‘corpus’ da própria
poesia experimentasse um descaminho. Vá poeta pelas planuras sem fim: faça de sua
alma um estilo “precisamente original” de inteligência celeste.
J.A.R. – H.C.
Herberto Helder
(23.11.1930-23.3.2015)
Poemacto (IV)
As vacas dormem, as
estrelas são truculentas,
a inteligência é
cruel.
Eu abro para o lado
dos campos.
Vejo como estou minado
por esse
puro movimento de
inteligência. Porque olho,
rodo nos gonzos como
para a felicidade.
Mais levantadas são
as arbitrarias ervas
do que as estrelas.
Tudo dorme nas vacas.
Oh violenta
inteligência onde as coisas
levitam
preciosamente.
O campo bate contra
mim, no ar onde elas
dormem –
vacas truculentas,
estrelas
apaziguadas estrelas
– e a inteligência, afinal
selvajaria celeste
sobre a minha respiração.
Eu penso em mudar
estes campos deitados, criar
um nome para as
coisas.
Onde era estábulo, na
doce morfologia
fazer
com que as estrelas
mugissem e as poeiras
ressuscitassem.
Dizer: rebentem os
taludes, enlouqueçam as vacas,
que a minha
inteligência se torne terrífica.
Unir a ferocidade da
noite ao inebriado
movimento da terra.
Posso mudar a
arquitectura de uma palavra.
Fazer explodir o
descido coração das coisas.
Posso meter um nome
na intimidade de uma coisa
e recomeçar o talento
de existir.
Meto na palavra o
coração carregado de uma coisa.
Eu posso
modificar-me.
Ser mais alto que a
corrupção.
Campos abanados pelo
silêncio. Alguém como eu
mergulhando no que é
obscuro
das vacas dormindo.
Estrelas giradas, de
repente mortas
sobre mim. Penso
alterar tudo,
recuperar agora as
colinas do mundo.
Falando de amor, eu
falo
do génio destruidor.
Falo que é preciso
criar a velocidade
das coisas.
Que é preciso caçar
flores, golpear as estrelas,
meter o sono nas
vacas, desentranhar-lhes
o sono,
dar o sono às
estrelas.
Enlouquecer.
Que é preciso recriar
o criar, meu Deus, ser truculento.
Ser simples e não o
ser.
Abandonar os campos,
rodopiar
a inteligência, a
crueldade.
Abro a porta para não
esquecer esta
absurda tarefa.
Esta tão particular
necessidade.
Porque agora deixei
totalmente de ser puro.
Levanto-me para dar
de comer quentes
estrelas às vacas.
Sou tão puro, meu Deus,
tão truculento.
É preciso principiar.
Digo baixo o nome.
Corto os pés das estrelas.
Deixá-las na sua
seiva estremeceste.
Digo baixo que é
talento envenená-las.
Minha alegria
furibunda é a pureza do mundo.
E é tão belo agarrar
com os ossos
que há dentro das
mãos
na ponta de um nome,
e desdobrá-lo.
Arrancar essa alma
apertada.
Porque eu sei o
estilo de uma alma
precisamente
original.
Corto as estrelas das
vacas.
Trago candeias para
os campos extraordinários.
Porque eu bato na
porta com o meu júbilo furioso.
O amor acumula-se.
É para dar o ardor em
doce dissipação.
Deus não sabe e
sorri, esmigalhado
contra o muro humano.
Respiro, respiro. As
coisas respiram.
Esta oferta masculina
vocifera na terra.
Criar é delicado.
Criar é uma grande
brutalidade.
Porque eu sou feliz.
Durmo
na obra.
Só eu sei que a
loucura minou este ser
inexplicável
que me estende nas
coisas.
A loucura entrou em
cada osso,
e os campos são o meu
espelho.
Esta imagem perfeita
arromba os espelhos.
Os nomes são loucos,
são verdadeiros.
Referência:
HÉLDER, Herberto. Poemacto (IV). In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO,
Alexei (orgs.). Antologia da poesia
portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p.
231-233.
acho que a referência está errada, esse é o Poemacto IV, e não o II... mesmo assim, obrigada pelo compartilhamento dessa linda poesia de Helder, minha favorita!
ResponderExcluirPrezado(a): Muito obrigado pela observação. Já retifiquei o número da seção do poema, tal como você me informa e pude ratificar em outro livro onde ela consta. O equívoco foi meu: a obra de referência, ao final da postagem, apresenta apenas duas seções do poema, sem numerá-las, levando-me a supor que a última delas fosse a segunda, o que, como se evidencia, é inexato.
ExcluirUm abraço,
João A. Rodrigues