Para os fãs de “Ulisses” (“Ulysses”, 1922), uma já clássica obra do
irlandês James Joyce, transcrevemos um guia, de autoria do tradutor José
Antonio Arantes, com pequenas adaptações. São rápidas sumas de cada um dos
dezoito episódios deste livro que, a cada ano, motiva celebrações no
“Bloomsday”, ou melhor, 16 de junho, mesma data em que se passa a história
narrada pela obra, no já distante 16 de junho de 1904.
J.A.R. – H.C.
James Joyce
(1882-1941)
Um Guia para Entender Ulisses
(José Antonio
Arantes)
Quatro Personagens
Leopold Bloom tem 38 anos, filho de pai
judeu imigrante, o húngaro Rudof Virag (que ao chegar à Irlanda mudara o nome
para Rudolph Bloom) e Ellen Higgins, não judia. Corretor de anúncios de jornal.
Casado com Molly Bloom. Pai de Milly Bloom. O casal teve um filho, Rudy, que
viveu apenas onze dias, de 29 de dezembro de 1893 a 9 de janeiro de 1894.
Bloom, homem comum, sente-se deslocado na comunidade xenofóbica de Dublin.
Quando o encontramos, ele relembra o suicídio do pai e a ausência do filho,
preocupa-se com a fi lha adolescente e remói a suspeita de uma traição de
Molly.
Molly Bloom, 34 anos, é mulher de
Leopold, mãe de Milly. Cantora soprano. Nascida em Gibraltar no dia 8 de
setembro de 1870, com o nome Marion Tweedy, mudou-se para Dublin aos 16 anos,
com o pai, o major Brian Tweedy. A mãe, Lunita Laredo, talvez espanhola e de
família judia, teria morrido ou abandonado a família quando Molly era nova.
Molly é vista por outras personagens como mulher sensual, voluptuosa e até
prostituta. Só aparece substancialmente no fim da narrativa, enquanto o marido
dorme, no extraordinário monólogo.
Stephen Dedalus é único personagem em Ulisses que aparece no romance anterior
de Joyce, Um retrato do artista quando
jovem. Neste, Stephen é enfocado desde a infância até a juventude, dos
primeiros estudos à universidade, da complexa formação de um artista
inconformado até a recusa ao provincianismo cultural e político, à sociedade católica
coerciva, e a inevitável partida para Paris.
Em Ulisses,
Stephen retorna à Irlanda devido à morte da mãe. Por falta de dinheiro e
indecisões, permanece em Dublin, onde mora com Mulligan no litoral num antigo
forte circular, a torre Martello, do tempo das guerras napoleónicas. Leciona
numa escola para adolescentes e continua a pregar a estética em que acredita.
Malachi “Buck” Mulligan é estudante de
medicina e escritor que, sem se importar de fazer concessões em relação à arte,
começa a se integrar no círculo literário de Dublin. Mora na torre Martello com
Stephen Dedalus, de quem é amigo e rival.
O Enredo
Oito horas da manhã na torre Martello,
à beira-mar, onde Stephen Dedalus mora com Mulligan. O inglês Haines, amigo de
Mulligan, é hóspede. Mulligan e Stephen discutem arte: Stephen preza a arte
íntegra e despreza a concessão para obter reconhecimento, que é a posição de
Mulligan. A tensão subliminar entre os dois é aumentada por Haines, que
pretende estudar o renascimento da literatura irlandesa e admira o folclore.
Revela-se antissemita. Stephen vê em Haines um representante do colonizador,
opressor da Irlanda. Tomam o café da manhã e saem. Mulligan vai se banhar. Dois
homens procuram o corpo de um afogado.
Parte I: Telemaquíada
1. Telêmaco: Stephen sente que não há mais lugar para ele
na torre. Entrega as chaves a Mulligan e parte, sem intenção de voltar. Stephen
Dedalus é apresentado como artista. Mulligan e Haines equivalem aos
pretendentes de Penélope (da Odisseia)
e a partida de Stephen simboliza a busca de um pai (no caso, espiritual).
Stephen, que já havia deixado a casa dos pais, começa o dia assediado pelo
espectro da mãe; remói a culpa de não ter rezado por ela no leito de morte um
ano antes. A narração combina o realismo com o monólogo interior (a técnica
narrativa é juvenil).
2. Nestor: Stephen vai para a
escola onde leciona, a poucos quilômetros da torre, no sudeste de Dublin. Os
alunos comportam-se mal e Stephen não consegue controlá-los. Terminada a aula,
fica na classe para orientar o garoto Cyril Sargent, atrasado em matemática.
Stephen se identifica com Cyril quando menino. Imagina-o protegido dos males do
mundo pela mãe. Libera-o para jogar hóquei e procura o diretor da escola,
Garrett Deasy, para receber o pagamento. Deasy discursa sobre economia,
aconselha Stephen a controlar as finanças, defende o unionismo como se fosse
inglês, explica mal as relações entre Inglaterra (o dominador) e Irlanda (a
dominada), revela-se antissemita, tal como Haines (“a Irlanda nunca perseguiu judeus
porque nunca os deixou entrar”). Deasy escreveu uma carta de alerta para os
perigos de epidemia de febre aftosa e entrega-a a Stephen para, por meio de sua
influência, publicá-la em jornal. O episódio enfatiza a situação histórica da
Irlanda (a arte aqui é história) e ressalta o deslocamento de Stephen, tanto
físico como psicológico. Por meio do menino Cyril, é introduzido o tema do amor
materno, associado sutilmente ao espectro da mãe de Stephen. O monólogo
interior é utilizado durante todo o episódio, mais intensamente no início e no
fim.
3. Proteu: Depois de sair da
escola, Stephen anda pela praia a caminho do centro de Dublin. Reflete sobre
filosofia e estética, evocando o filósofo grego Aristóteles e o poeta inglês
William Blake, entre outros. Passa pela casa dos tios e imagina uma visita que
não faz. Reflete sobre o que aspirou, realizou e não realizou, sobre os anos em
Paris como estudante de medicina e autoexilado. Imagina a vida pregressa de
duas pessoas que vê na praia. Num pedaço de papel que arranca da carta de
Deasy, anota os versos de abertura de um poema simbolista. Stephen reflete sobre
o visível e o invisível, o mundo objetivo como sinais que exigem interpretação,
a transformação de tudo no tempo e no espaço, na própria mente. O grande significado
aqui é a matéria primordial, a água, e o símbolo a evolução e a metamorfose.
Correm sublinarmente os temas da mãe, da mulher e da fertilidade. Monólogo interior
intenso (masculino).
Parte II: Odisseia
4. Calipso: Oito horas da manhã, casa número 7 da rua
Eccles, noroeste de Dublin. Leopold Bloom prepara o café da manhã para si, para
a mulher e para o gato. Resolve comer rim de porco, vai ao açougue comprar. Vê
uma mulher que lhe desperta devaneios. Volta para casa, recolhe a
correspondência. Uma carta da filha Milly, outra de Blazes Boylan endereçada a
Molly. Blazes organizou uma turnê de concertos que inclui Molly, mas Bloom desconfia
que a mulher o trai com Blazes. Bloom come o rim tostado, vai ao banheiro, fora
da casa, com um jornal. Prepara-se para ir ao enterro de um amigo, Paddy Dignam.
Este capítulo apresenta o personagem que se pode interpretar como a encarnação
de Odisseu, o pai espiritual de Stephen. O monólogo interior prevalece, mas
diferente, porque Bloom é um homem comum. O devaneio ocupa-lhe a mente,
sugerindo temas que vão e voltam ao longo do romance, como sionismo e erotismo (os
símbolos aqui são Israel, família, vagina).
5. Os Lotófagos: Bloom sai de casa e anda pelas ruas de
Dublin. Pensa em anúncios, ciência. Carrega uma carta que recebeu endereçada a
Henry Flower (seu pseudônimo), enviada por Martha Clifford, que nunca conheceu,
mas que sempre lhe escreve. Vai à igreja, à farmácia. Reflete sobre remédios, produtos
químicos. Um conhecido pede-lhe o jornal emprestado, para verificar informações
sob corrida de cavalos. O tema da sensualidade e da sexualidade vai se
formando, com as fantasias sobre Martha. Os jogos de palavra também se
estabelecem: o nome Henry Flower e Bloom remetem à florescência, o desejo
sexual que aflora (a correspondência direta com Homero é lotófagos); o nome do
cavalo que o amigo vai apostar é Throwaway (jogar fora). O significado aqui é
sedução e lealdade.
6. Hades: Bloom vai ao enterro
de Dignam com amigos. No cemitério, conhece pessoas, entre elas o jamais
identificado homem “de capa impermeável”. Reflete sobre nascimento, morte,
transitoriedade, o filho Rudy o pai suicida. Participa de conversas sobre a
morte que desembocam na situação da Irlanda após a morte do líder do Partido
Nacionalista Irlandês, Charles Stewart Parnell. A correspondência com Homero é
o episódio da Circe, a deusa-feiticeira que aconselha Odisseu a descer aos
infernos e consultar os mortos para tentar encontrar um rumo. As pessoas que
Bloom conhece representam esses mortos. O significado é a descida ao nada, e os
símbolos o homem desconhecido e o inconsciente. Joyce denomina a técnica “incubismo”.
7. Éolo: Bloom vai à redação
dos jornais onde trabalha, Freeman’s
Journal e Evening Telegraph, para fechar o contrato de um anúncio. Stephen
aparece para entregar a carta do diretor da escola. Um vento forte sopra quando
as portas se abrem, fazendo voar papéis. Histórias ligadas ao jornalismo,
discursos e política (Grã-Bretanha comparada com Roma, Israel com Irlanda), exílio.
Stephen e outros vão para o bar, Bloom vai para a Biblioteca Nacional pesquisar
o layout para um anúncio. Joyce
substitui o monólogo interior pela linguagem do jornalismo, com o uso abundante
de manchetes. O vento representa a retórica pseudo-objetiva, transparece uma espécie
de consciência coletiva. Joyce recorre à retórica, cuja origem é grega e
romana. A narrativa é impessoal.
8. Os Lestrígones: Bloom continua a
andar por Dublin, pensando no passado: Molly amores de Molly, nascimento e
família. Avista a irmã de Stephen da rua, alimenta aves, pensa em publicidade, Encontra
uma conhecida, ex-amor passageiro, que lhe conta que a senhora Purefoy está
internada na maternidade. Bloom, com fome, entra no bar David Byrne. Sai do
bar, ajuda um cego a atravessar a rua. Joyce retoma o monólogo interior para
retratar Bloom como homem bondoso e solidário. O pensamento que corre quase
imperceptível, como se reprimido, é a suspeita de traição de Molly com Blazes Boylan,
que ele receia encontrar. O significado aqui é melancolia. Joyce constrói o
capítulo com associações de ideias.
9. Cila e Caribde: Stephen discute
Shakespeare com um grupo de intelectuais, entre eles A. E., na Biblioteca
Nacional. Stephen expõe sua teoria da criação literária, utilizando o idealismo
defendido por A. E. e o materialismo defendido por Mulligan para mostrar que
arte e vida interagem. Com base na teologia, filosofia e literatura, defende
que Hamlet seria fruto de uma relação verdadeira; assim como o filho de Shakespeare,
Hamlet, teria sido fruto de uma relação adúltera de Ann Hattaway. O pai
fantasma na peça seria Shakespeare, Hamlet fruto do espírito criativo do
dramaturgo, a traidora Gertrude seria Hathaway. Mulligan aparece na biblioteca,
ridiculariza a teoria de Stephen. Bloom chega e parte. Mulligan ridiculariza
Bloom por ser judeu e afirma que Bloom deseja Stephen. Saem todos da
biblioteca. A narrativa adota o estilo de Stephen das três primeiras partes. A
ênfase na teoria de Hamlet de certa forma mina a teoria estética de Stephen.
10. As Rochas Ondulantes: Abundância de
personagens, entre eles o padre Conmee, as irmãs de Stephen e Blazes Boylan. Os
acontecimentos são praticamente impossíveis de recontar com brevidade. O
episódio consiste em dezoito narrativas breves, desconectadas e sem sequência
temporal. Vários motivos se repetem, como se a narrativa principal não tivesse
rumo a tomar. É a interpretação de Joyce do episódio de Circe, na Odisseia de Homero, em que ela sugere a
Odisseu que não tome determinado rumo. O significado é ambiente hostil, a
técnica labiríntica, os símbolos homônimos, sincronizações e semelhanças. Note-se
que o romance tem dezoito episódios sobre as errâncias (internas e externas)
dos personagens num único dia.
11. As Sereias: Bloom compra jornal,
vê o carro de Blazes Boylan estacionado em frente ao hotel Ormond e desconfia
que ele está lá dentro. Entra com o amigo Ritchie Goulding. Boylan flerta com
as garçonetes e vai embora. Simon Dedalus, pai de Stephen, toca ao piano e
canta, Ben Dollard canta uma balada sobre a revolta irlandesa. Atmosfera de
nacionalismo. Bloom, alheio, pensa em Molly, escreve uma resposta à carta de
Martha Cardiff. Depois sai. O episódio compõe-se de inúmeros fragmentos que se
relacionam como uma fuga. A técnica adequada às sereias é a música; daí estar
repleto de canto e música. Falas e associações também são arranjadas como
música, algumas palavras fragmentadas a ponto de se tornarem puros sons. A
narrativa lógica se dilui e a música é uma espécie de voz narradora. Resta a
mente de Bloom, de novo desconfiado de que Boylan foi visitar Molly.
12. Os Ciclopes: Bloom dirige-se para
o bar de Barney Kiernant, Tavern, onde pretende se reunir com Martin Cunningham
para conversar sobre os assuntos da família Dignam. Lá está o personagem
Cidadão, nacionalista ferrenho. Bloom entra. O Cidadão fala de pena de morte. Bloom
tenta conversar com ele com jeito. O Cidadão desdenha Bloom, afirmando que a
Irlanda está cheia de estrangeiros, discursa sobre a história irlandesa. Bloom
fala de amor e compreensão, ciente de sua ascendência judia, depois sai.
Lenehan acha que o cavalo em que Bloom teria apostado (Throwaway) foi o
vencedor. O Cidadão se enfurece. Bloom volta e o Cidadão, violento, força Bloom
a deixar o bar. Um dos capítulos mais complexos, a narrativa é interrompida por
inúmeras passagens paródicas voltadas para si mesmas, indo do discurso jurídico
e lendas irlandesas, eventos sociais e religiosos a desastres da natureza. Há
um narrador não identificável e outro que é o Cidadão. No paralelo com Homero,
o Cidadão é o Ciclope, que vê tudo segundo um único ponto de vista, sobretudo a
ordem estabelecida. Os símbolos são a nação, o Estado, o fanatismo; a técnica é
o gigantismo.
13. Nausicaa: Novos dublinenses
aparecem na praia de Sandymount, onde Stephen caminhou às oito da manhã (agora são
oito da noite): Gerty MacDowell, Edy Boardmanm e Cissy Caffrey e os irmãos
desta. Gerty irrita-se com a algazarra dos meninos. Devaneia, pensa no homem
que a rejeitou e em coisas religiosas. Bloom está na praia, um pouco distante.
Gerty pensa nele romanticamente. Começa queima de fogos de artifício. As amigas
saem correndo, Gerty fica, insinuando-se levemente e deixando que Bloom lhe
entreveja as pernas. Quando ela se vai, Bloom percebe que é manca. Antes disso,
Bloom já havia se masturbado. Pensa nos filhos, pensa em Gerty. Os estilos aqui
variam conforme as personagens. O de Gerty é tirado de um romance romântico. O
romantismo possibilita a Joyce “revelar” o impulso sexual subjacente e o erotismo
discreto. Os fogos de artifício estouram no exato momento do orgasmo de Bloom.
Com a partida de Gerty, o ponto de vista narrativo volta para Bloom. A traição
de Molly retorna com o canto de um cuco. O significado é a ilusão projetada; os
símbolos, o onanismo, a mulher, a hipocrisia; a técnica, tumescência,
detumescência.
14. O Gado do Sol: Na maternidade do
hospital de Dublin, a senhora Purefoy está em trabalho de parto. Bloom a
visita. Stephen, Lenehan, Lynch e Mulligan festejam ruidosamente. Discutem a
ética da medicina em relação a um parto malsucedido e à prevenção da gravidez.
Bloom pensa no filho morto. Stephen discorre sobre literatura. Cai um temporal,
que Bloom explica cientificamente. A enfermeira pede-lhes silêncio duas vezes.
O menino nasce. O grupo vai embora. Stephen e Lynch vão para a zona de
prostituição. Outro episódio complexo: aos nove meses de gravidez correspondem
várias vozes, estilos da literatura inglesa, linguagem simbólica, disparates,
gíria e discurso religioso. A linguagem vai do primitivo à modernidade. De
acordo com uma visão corpórea do romance, Joyce põe na linguagem a mediação da
realidade física. A técnica, como ele informou, é o “desenvolvimento embriônico”;
os símbolos são fecundação e partenogênese; a arte a medicina.
15. Circe: Meia-noite, bordel
de Bella Cohen. Stephen e Lynch entram, bêbados. Bloom chega. Alucina, acossado
pelas visões de Gerty, Molly, do pai e da mãe. Preso por desordem, é submetido
a um julgamento, durante o qual o chamam por vários nomes. Uma prostituta lhe
diz que Stephen está na sala de música. Bloom transforma-se no avô de Stephen;
Stephen transforma-se num cardeal ao discutir teologia. A dona do bordel,
Cohen, troca de sexo com Bloom e o submete a castigos. O espectro da mãe de
Stephen aparece, ele destrói um candelabro e, com Bloom, é expulso do bordel.
Na rua, soldados rasos espancam Stephen por ter ofendido o rei e o largam inconsciente
na calçada. A polícia chega. Bloom resolve a situação. O filho Rudy aparece em
visões. Um episódio em que objetividade e subjetividade se interpõem, a
alucinação substitui o realismo. Joyce chama a zona de prostituição de “cidade
da noite”, uma metáfora do inconsciente, lugar propício para fantasias,
pesadelos e realizações de desejos. Densamente metafórico, na diluição das
fronteiras concretiza-se o encontro mais profundo de Bloom e Dedalus. A arte é
a magia; os símbolos são zoologia, personificação.
Parte III: Nostos
16. Eumeu: Bloom leva Stephen
para o abrigo de motoristas de praça, não longe da cidade da noite. Stephen
encontra um amigo desempregado e recomenda procurar emprego na escola de Deasy,
de onde resolveu se demitir. No abrigo, bebem café e conversam com um
marinheiro, W. B. Murphy. Bloom sonha em viajar. Bloom fala do encontro com o
Cidadão, mas Stephen não lhe presta atenção. Mostra a fotografia de Molly. Os
dois saem do abrigo. A narração é convencional, mas com vários estilos. Novas personagens
parecem ser simuladas, como se ocultassem a identidade. O mesmo aplica-se a
Stephen e Bloom. Vaguidão e incoerência permeiam o episódio. A arte é a navegação;
o símbolo são marinheiros; a narrativa é senil.
17. Ítaca: Bloom leva Stephen
para casa, o mesmo número 7 da rua Eccles. Como Stephen, está sem a chave da porta
da frente (perdeu-a). Pula a grade para entrar pela porta dos fundos, não
querendo acordar Molly. Prepara um chocolate e os dois rememoram tempos passados.
Arte,no caso de Stephen; ciência, no caso de Bloom. Bloom convida-o a morar com
ele e Molly. Stephen entoa uma cantiga sobre uma menina judia. Bloom convida Stephen
para passar a noite. Stephen recusa. Vão para o jardim e urinam, enquanto no
céu passa uma estrela cadente. Stephen vai embora. Bloom volta a entrar. Guarda
a carta que escreveu para Martha Cardiff numa gaveta, depara-se com coisas que
lhe trazem lembranças. Repassa o dia que findou. Vai para o quarto. Sente na
cama a presença de Boylan. Deita-se com a cabeça voltada para os pés de Molly,
posição fetal, e dorme. Próximo do fim, o romance parece carecer de amarração.
E um episódio com a técnica do catecismo (impessoal), em forma de perguntas e
respostas. As respostas muito precisas e científicas (por exemplo, a reflexão
sobre o complexo sistema que leva a água à torneira da cozinha de Bloom). O “fim”
é o encontro de Bloom e Stephen como pai e filho espirituais (Joyce usa as
composições “Stoom e Blephen”), mas também a separação um do outro, ao menos
neste dia. E é um distanciamento também de Homero. O símbolo são cometas.
18. Penélope: Na cama, Molly
reflete sobre o marido, o encontro com Boylan, o passado, as esperanças.
Suspeita que Bloom tenha uma amante, pensa nos próprios amantes idos. Aspira a
um grande futuro. Pensa em Gibraltar, na filha. É interrompida duas vezes, uma
por um apito de trem, outra pelo início da menstruação. Pensa no médico, em
Stephen, no filho morto e em Bloom. O relógio toca. Lembra-se de quando fez
sexo com Bloom pela primeira vez. Este longo e último episódio, sem pontuação gráfica,
é um monólogo interior fragmentado, com frases ligadas ininterruptamente por
associações. Há o infinito, a intemporalidade, a ausência de identificação.
Segundo o próprio Joyce, as oito frases de Molly começam e terminam com “sim”
porque são a afirmação do “eterno feminino”: “Mulher, sou a carne que sempre
afirma”.
José Antonio Arantes é tradutor de
autores de língua inglesa, como James Joyce, Virgínia Woolf, William Blake. É
bacharel em língua e literatura inglesa (USP).
Referência:
ARANTES, José Antonio. Como entender
Ulisses. In: Aguiar, Josélia (Ed.). 7
clássicos ingleses. São Paulo, SP: Duetto, 2010. p. 86-97. (Coleção ‘7
Clássicos’)
PINHEIRO, Bernardina da Silveira.
Esquema dos episódios. In: JOYCE, James. Ulisses.
Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro:
Objetiva/Alfaguara, 2007. p. 19.
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