Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Paruyr Sevak - Apelo aos Computadores Eletrônicos do Mundo

Em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia e pelos avanços científicos, o poeta armênio levanta a voz para nos conscientizar da dependência que deles temos, a despeito da patente incapacidade de as máquinas, digo melhor, os computadores – os nomeados “deuses dos novos tempos” – compreenderem os aspectos mais profundos da natureza humana.

 

Com efeito, parece-lhe que não há por que confiar nos cálculos e na lógica para se entender fenômenos como o amor, a dor, a tristeza, a esperança, a fé, a saudade e a desilusão, pois a complexidade da experiência humana mostra-se irredutível a números e equações.

 

Mais do que isso: a crítica do autor se estende aos usos espúrios dos aprimoramentos tecnológicos – como submarinos nucleares, bombas de hidrogênio e canhões (atualizemos, mísseis hipersônicos e drones) –, os quais, em vez de trazerem bem-estar e segurança, acabam por ser empregados pela indústria armamentista na promoção de guerras intermináveis.

 

Ao fim, o grito desesperado para que preservemos a nossa condição humana ante os perigos de nos tornarmos seres insensíveis, autopáticos, talvez infensos a quaisquer ponderações éticas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Paruyr Sevak

(1924-1971)

 

Apelo aos Computadores Eletrônicos do Mundo

 

Cálculos e mais cálculos!...

Vamos, calculem

em quantos segundos

na frequência de que onda

quantos gramas de sangue

afluem do coração duma donzela

às suas faces inocentes,

deflagrando o estalido termonuclear

a que faz tanto tempo

ingenuamente

damos o nome de rubor;

que torrente de raios cósmicos

transpõe, como um espaço sideral,

nossos olhos no momento exato

dum encontro total com outros olhos...

se esses recíprocos reflexos

lesam ou felicitam o nosso coração!

 

Cálculos e mais cálculos!...

Vamos, calculem

quantos quilowatts de energia

têm transmitido as nossas palmas

no acariciar as tenras mãozinhas

e os suaves cabelos das crianças,

o grácil talhe de nossas amadas,

os ombros acurvados dos avós,

e se de todos temos recebido

menos ou mais do que lhes temos dado?

 

Calculem mais! Continuem calculando!

Calculem, eu lhes peço

quantos na vida,

ao menos um de nós,

a quantas mulheres deitaram

um olhar sensual,

a quantas um de pura admiração,

a quantas um de fraternal ternura,

e indiquem um lugar onde encontrar aquelas

que poderiam ter-nos amado com paixão,

mas nunca foi possível nosso encontro?...

Revelem-nos o número de filhos

que poderíamos ter tido,

mas não tivemos e jamais teremos.

Revelem-nos também o número de quantos

já sentíamos nossos, mas não foram...

 

Calculem mais! Continuem calculando!

pois ainda ignoramos

por que o homem ri, somente o homem

e mais nenhum vivente...

Revelem-nos, então, quantas as vibrações

que há em nosso sorriso,

e as variações de seus matizes;

demonstrem em que diferem

o risinho enganoso e o sorriso leal.

 

Com esse poderoso cérebro eletrônico

e esse faiscante olho de ciclope

desprovido de esclerótica,

façam

a análise da saudade;

recolham

essa névoa invisível que dela sempre emana

e digam

em que rumo se vai...

 

Calculem mais!... Calculem

indefinidamente

e estabeleçam desde logo

a data, o tempo aproximado

em que os povos errantes finalmente

se recuperarão de sua sina

e as nações agressoras

terão a merecida punição...

 

Quantos seres, há séculos sem número,

perdida a fé no Deus inalterável

continuam esperando,

esperando, esperando!

Vocês, os deuses dos novos tempos,

não nos defraudem,

ao menos,

não ressurjam decepcionantes!

 

Computem quantas pontes

de país a país

quiséramos passar,

mas jamais o fizemos,

que jamais cruzaremos!...

 

Contabilizem

as ilusões e os sonhos,

nomes com que expressamos neste mundo

as nossas frustrações,

nossos desejos mutilados...

 

Revelem-nos

o número preciso de descrenças

em que amadurecemos,

ou, mais amiúde, emurchecemos

cedo demais...

 

Assinalem

a trilha da desilusão

e possamos confiar

em que não seja igual ao trâmite do raio.

 

Mostrem-nos

a senda do desengano

– e praza a Deus não seja em ziguezague –,

e as veredas do desencanto

– e oxalá não se alinhem paralelas,

ao curso de nossa vida,

porque, por mais que se prolonguem,

as paralelas não se encontram nunca...

 

Revelem-nos

a soma daquelas nossas horas

sem número e sem conta,

que nos momentos fáceis ou difíceis

se afastaram... se perderam

na esperança das rotinas

e desse ir e vir do dia a dia,

na leitura de jornais

de distintos idiomas,

por cujas negras manchetes flamejantes,

manhã após manhã,

com seu olhar singular

espreitam os canhões os nossos olhos,

e os submarinos afundam

nossos anseios em nossas almas...

e as bombas de hidrogênio

ameaçam converter em água branca

o sangue rubro de nossas veias.

 

Calculem finalmente

com quantas toneladas de átomos se pode

facilmente rachar o núcleo da terra.

Digam-nos, outrossim,

com a invenção de que armas

as mães hão de perder o dom da concepção.

Se conseguirem explicar tudo isso

já não será preciso que nos digam

qual o peso da ausência da fé;

só restaria esclarecer-nos

por qual milagre o peso dessa ausência

inda não nos fincou na terra até o pescoço,

com aguçada estaca...

 

Informem-nos também, sem subterfúgios,

que tempo levará para voltar ao mundo

o menino de Andersen,

graças a quem os reis souberam

que estavam totalmente nus,

e peço-lhes que digam mais

se os reis, reconhecendo o fato,

cobrirão a nudez ou, obstinadamente,

obrigarão os que se opõem,

ou se envergonham,

a marchar pela terra

com os olhos vendados...

 

Descubram

se a surdez beethoveniana

não tem algo que ver com explosões tremendas

que se sucedem, agora,

quer no planeta, quer acima dele,

e, se isso for verdade, eu lhes suplico

que nos expliquem

se o mundo de hoje é mais feliz

por abrigar tantos Beethovens,

ou apenas se aumentou o número dos surdos.

 

Determinem, por último,

como, por meio de que máquina sublime,

a despeito de tudo,

será possível fazer o homem

continuar homem,

ou se já mesmo existe algum possível meio

de converter o homem

em verdadeiro Homem!...

 

O Êxodo

(Robert C. Spencer: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

SEVAK, Paruyr. Apelo aos computadores eletrônicos do mundo. Provável tradução de Yessai Ohannes Kerouzian. In: KEROUZIAN, Yessai Ohannes (Organizador e provável tradutor). A nova poesia armênia. [São Paulo (SP)?]: [s. ed.]; [1982?]. p. 223-227. (Série “Armênia”; nº 8).

Nenhum comentário:

Postar um comentário