Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Nicanor Parra - O peregrino

O “peregrino” de Parra é uma figura desorientada e solitária a clamar por atenção em meio ao bulício da vida quotidiana, representando o indivíduo deslocado para um dos lados preteridos pela “República”, entenda-se melhor, aquele situado à margem da sociedade e de suas normas: Parra nos descreve, em síntese, uma alma presa em um abismo, tanto sexual quanto intelectual, naufragada no silêncio e desejosa de ser ouvida.

 

Esse afã por compreensão e clareza – por uma luz que lhe incuta uma sensação de movimento e de mudança – retrata, em última instância, o estado de vulnerabilidade e de desamparo do falante, carente de proteção, de amor e de um sentido de pertencimento ao corpo social a que filiado, mas do qual ressente-se em razão de sua indiferença e distanciamento.

 

Poder-se-ia apreender o poema, com maior ou menor esforço, como uma metáfora para todas as pessoas que vivem à margem da sociedade, sem acesso aos recursos básicos para poderem sobreviver e sem um sistema de apoio que as ampare, haja vista que sumariamente ignoradas pelas estruturas sociais e governamentais, circunstâncias essas que as deixam perdidas na “invisibilidade”, em luta inglória contra a pobreza, a exclusão e a completa falta de oportunidades – muito distantes, por conseguinte, de um reconhecimento mínimo daquilo que se costuma chamar por dignidade da pessoa humana.

 

J.A.R. – H.C.

 

Nicanor Parra

(1914-2018)

 

El peregrino

 

Atención, señoras y señores, un momento de atención:

volved un instante la cabeza hacia este lado de la república,

olvidad por una noche vuestros asuntos personales,

el placer y el dolor pueden aguardar a la puerta:

una voz se oye desde este lado de la república.

¡Atención, señoras y señores! ¡un momento de atención!

 

Un alma que ha estado embotellada durante años

en una especie de abismo sexual e intelectual

alimentándose escasamente por la nariz

desea hacerse escuchar por ustedes.

Deseo que se me informe sobre algunas materias,

necesito un poco de luz, el jardín se cubre de moscas,

me encuentro en un desastroso estado mental,

razono a mi manera;

mientras digo estas cosas veo una bicicleta apoyada en un muro,

veo un puente

y un automóvil que desaparece entre los edificios.

 

Ustedes se peinan, es cierto, ustedes andan a pie por los jardines,

debajo de la piel ustedes tienen otra piel,

ustedes poseen un séptimo sentido

que les permite entrar y salir automáticamente.

Pero yo soy un niño que llama a su madre detrás de las rocas,

soy un peregrino que hace saltar las piedras a la altura de su nariz,

un árbol que pide a gritos se le cubra de hojas.

 

En: “Poemas y antipoemas” (1954)

 

O menino peregrino

(Alexis Grimou: pintor francês)

 

O peregrino

 

Atenção, senhoras e senhores, um minuto de atenção:

Virem um instante a cabeça para este lado da república,

Esqueçam por uma noite seus assuntos pessoais,

O prazer e a dor podem esperar do lado de fora:

Escuta-se uma voz deste lado da república.

Atenção, senhoras e senhores! um minuto de atenção!

 

Uma alma que esteve engarrafada durante anos

Numa espécie de abismo sexual e intelectual

Nutrindo-se escassamente pelo nariz

Deseja se fazer escutar por vocês.

Desejo que me informem sobre alguns assuntos,

Necessito de um pouco de luz, o jardim se cobre de moscas,

Me encontro num desastroso estado mental,

Pondero à minha maneira;

Enquanto digo essas coisas vejo uma bicicleta apoiada num muro,

Vejo uma ponte

E um carro que desaparece entre os edifícios.

 

Vocês se penteiam, claro, vocês andam a pé pelos jardins,

Por baixo da pele vocês têm outra pele,

Vocês possuem um sétimo sentido

Que lhes permite entrar e sair automaticamente.

Mas eu sou um menino que chama sua mãe por trás das rochas,

Sou um peregrino que faz as pedras pularem à altura de seu nariz,

Uma árvore que pede aos gritos que a cubram de folhas.

 

Em: “Poemas e antipoemas” (1954)

 

Referência:

 

PARRA, Nicanor. El peregrino / O peregrino. Tradução de Joana Barossi e Cide Piquet. In: __________. Só para maiores de cem anos: antologia (anti)poética. Seleção e tradução de Joana Barossi e Cide Piquet. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2018. Em espanhol: p. 190; Em português: p. 38-39.

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