Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

James Merrill - Anjo

O sujeito lírico descreve a presença de um pequeno anjo, com roupas finamente tecidas ao estilo de Van Eych, que airosamente revoluteia em seu escritório, enquanto se mantém ocupado com a sua arte, logo questionada pelo querubim, quando sugere que, ante o mundo criado por Deus e a música – como, v.g., a de Erik Satie (1866-1925) –, ambos “radiantes” e “louváveis”, difícil é se justificar a necessidade do ato de escrever, pois que lhe parece que o falante estaria, de fato, a negligenciar as coisas verdadeiramente importantes da vida.

 

Nada obstante, o poeta não cede totalmente a tal modulação de perspectiva – seguramente devotada à contemplação e à rendição ao sublime –, objetando haver certas imperfeições no mundo criado e na música, e mesmo nos gostos estéticos do próprio anjo: ainda que o ato de criação humana apresente algumas insuficiências ou senões, não deixa ele, em grande medida, de se inspirar num mundo de idealidades, de se pautar pela busca de perfeição estética, pelo desejo de traduzir o inefável em palavras.

 

J.A.R. – H.C.

 

James Merrill

(1926-1995)

 

Angel

 

Above my desk, whirring and self-important

(Though not much larger than a hummingbird)

In finely woven robes, school of Van Eyck,

Hovers an evidently angelic visitor.

He points one index finger out the window

As winter snatching to its heart,

To crystal vacancy, the misty

Exhalations of houses and of people running home

From the cold sun pounding on the sea;

While with the other hand

He indicates the piano

Where the Sarabande nº 1 lies open

At a passage I shall never master

But which has already, and effortlessly, mastered me.

He drops his jaw as if to say, or sing,

“Between the world God made

And this music of Satie,

Each glimpsed through veils, but whole,

Radiant and willed,

Demanding praise, demanding surrender,

How can you sit there with your notebook?

What do you think you are doing?”

However he says nothing – wisely: I could mention

Flaws in God’s world, or Satie’s; and for that matter

How did he come by his taste for Satie?

Half to tease him, I turn back to my page,

Its phrases thus far clotted, unconnected.

The tiny angel shakes his head.

There is no smile on his round, hairless face.

He does not want even these few lines written.

 

O Retábulo de Ghent:

Anjo da Anunciação (detalhe)

(Jan van Eyck: pintor flamengo)

 

Anjo

 

Sobre a minha secretária, ruflante e presunçoso

(Embora não muito maior que um beija-flor)

Em vestes finamente tecidas, à maneira de Van Eyck,

Paira um visitante evidentemente angelical.

Aponta um dedo indicador para fora da janela,

Indicando o inverno a lhe arrebatar o coração,

a cristalina vacuidade, os eflúvios

nevoentos das casas e das pessoas retornando ao lar,

fugindo ao sol gélido que incide sobre o mar;

enquanto que, com a outra mão,

indica o piano sobre o qual a cifra

da Sarabanda nº 1 encontra-se aberta

numa passagem que nunca chegarei a dominar,

mas que já – e sem esforço – conseguiu me dominar.

Tem entreaberto o maxilar, como se dissesse ou cantasse,

“Entre o mundo criado por Deus

e esta música de Satie,

ambos vislumbrados através de véus, mas inteiros,

radiantes e criados por um ato de vontade,

exigindo louvor, exigindo rendição,

como podes sentar-te aí com o teu caderno?

O que pensas que estás fazendo?”

No entanto, nada diz – sabiamente: eu poderia mencionar

falhas no mundo de Deus ou no de Satie; e, a propósito,

como se lhe ocorreu o gosto por Satie?

Um pouco para o provocar, volto à minha página,

às suas frases até agora coaguladas, desconexas.

O pequeno anjo balança a cabeça.

Não há sorriso em seu rosto redondo e glabro.

Não quer nem mesmo que se escrevam estas poucas linhas.

 

Referência:

 

MERRILL, James. Angel. In: __________. Selected poems: 1945-1985. 1. ed. New York, NY: Knopf, 1992. p. 78.

Nenhum comentário:

Postar um comentário