O sujeito lírico descreve a presença de um pequeno
anjo, com roupas finamente tecidas ao estilo de Van Eych, que airosamente revoluteia
em seu escritório, enquanto se mantém ocupado com a sua arte, logo questionada pelo
querubim, quando sugere que, ante o mundo criado por Deus e a música – como,
v.g., a de Erik Satie (1866-1925) –, ambos “radiantes” e “louváveis”, difícil é
se justificar a necessidade do ato de escrever, pois que lhe parece que o falante
estaria, de fato, a negligenciar as coisas verdadeiramente importantes da vida.
Nada obstante, o poeta não cede totalmente a tal modulação
de perspectiva – seguramente devotada à contemplação e à rendição ao sublime –,
objetando haver certas imperfeições no mundo criado e na música, e mesmo nos gostos
estéticos do próprio anjo: ainda que o ato de criação humana apresente algumas
insuficiências ou senões, não deixa ele, em grande medida, de se inspirar num
mundo de idealidades, de se pautar pela busca de perfeição estética, pelo
desejo de traduzir o inefável em palavras.
J.A.R. – H.C.
James Merrill
(1926-1995)
Angel
Above my desk, whirring and self-important
(Though not much larger than a hummingbird)
In finely woven robes, school of Van Eyck,
Hovers an evidently angelic visitor.
He points one index
finger out the window
As winter snatching
to its heart,
To crystal vacancy,
the misty
Exhalations of houses
and of people running home
From the cold sun
pounding on the sea;
While with the other
hand
He indicates the
piano
Where the Sarabande
nº 1 lies open
At a passage I shall
never master
But which has
already, and effortlessly, mastered me.
He drops his jaw as
if to say, or sing,
“Between the world
God made
And this music of
Satie,
Each glimpsed through
veils, but whole,
Radiant and willed,
Demanding praise,
demanding surrender,
How can you sit there
with your notebook?
What do you think you
are doing?”
However he says
nothing – wisely: I could mention
Flaws in God’s world,
or Satie’s; and for that matter
How did he come by
his taste for Satie?
Half to tease him, I
turn back to my page,
Its phrases thus far
clotted, unconnected.
The tiny angel shakes
his head.
There is no smile on
his round, hairless face.
He does not want even
these few lines written.
O Retábulo de Ghent:
Anjo da Anunciação
(detalhe)
(Jan van Eyck: pintor
flamengo)
Anjo
Sobre a minha
secretária, ruflante e presunçoso
(Embora não muito
maior que um beija-flor)
Em vestes finamente
tecidas, à maneira de Van Eyck,
Paira um visitante
evidentemente angelical.
Aponta um dedo
indicador para fora da janela,
Indicando o inverno a
lhe arrebatar o coração,
a cristalina
vacuidade, os eflúvios
nevoentos das casas e
das pessoas retornando ao lar,
fugindo ao sol gélido
que incide sobre o mar;
enquanto que, com a
outra mão,
indica o piano sobre
o qual a cifra
da Sarabanda nº 1
encontra-se aberta
numa passagem que
nunca chegarei a dominar,
mas que já – e sem
esforço – conseguiu me dominar.
Tem entreaberto o maxilar,
como se dissesse ou cantasse,
“Entre o mundo criado
por Deus
e esta música de
Satie,
ambos vislumbrados
através de véus, mas inteiros,
radiantes e criados
por um ato de vontade,
exigindo louvor,
exigindo rendição,
como podes sentar-te
aí com o teu caderno?
O que pensas que
estás fazendo?”
No entanto, nada diz –
sabiamente: eu poderia mencionar
falhas no mundo de
Deus ou no de Satie; e, a propósito,
como se lhe ocorreu o
gosto por Satie?
Um pouco para o
provocar, volto à minha página,
às suas frases até
agora coaguladas, desconexas.
O pequeno anjo
balança a cabeça.
Não há sorriso em seu
rosto redondo e glabro.
Não quer nem mesmo
que se escrevam estas poucas linhas.
Referência:
MERRILL, James.
Angel. In: __________. Selected poems: 1945-1985. 1. ed. New York, NY:
Knopf, 1992. p. 78.
❁


Nenhum comentário:
Postar um comentário