Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 30 de novembro de 2025

César Vallejo - A cólera que parte o homem em crianças

Vallejo aborda a cólera e a frustração que atormentam o homem, especialmente os pobres, decompondo e fragmentando a existência, levando à perda de coesão, numa luta amarga e desigual, tendo por consequência a dissolução da harmonia natural, em meio à qual se desintegram quaisquer apelos por afirmação, quaisquer noções de moralidade, quaisquer valores atinentes à equidade.

 

As injustiças distributivas despertam a raiva dos pobres, que se volta contra as forças opressivas e desestabilizadoras que as fomentam, eis que promotoras de infames desigualdades com impactos desagregadores quer no mundo individual ou psicológico, quer no social, quer ainda no nível cósmico, dando ensejo a sérios agravos sobre a higidez da natureza, do pensamento e do próprio corpo humano.

 

J.A.R. – H.C.

 

César Vallejo

(1892-1938)

 

La cólera que quiebra al hombre en niños

 

La cólera que quiebra al hombre en niños,

que quiebra al niño en pájaros iguales,

y al pájaro, después, en huevecillos;

la cólera del pobre

tiene un aceite contra dos vinagres.

 

La cólera que al árbol quiebra en hojas,

a la hoja en botones desiguales

y al botón, en ranuras telescópicas;

la cólera del pobre

tiene dos ríos contra muchos mares.

 

La cólera que quiebra al bien en dudas,

a la duda, en tres arcos semejantes

y al arco, luego, en tumbas imprevistas;

la cólera del pobre

tiene un acero contra dos puñales.

 

La cólera que quiebra al alma en cuerpos,

al cuerpo en órganos desemejantes

y al órgano, en octavos pensamientos;

la cólera del pobre

tiene un fuego central contra dos cráteres.

 

26 Oct. 1937

En: “Poemas humanos” (1939)

 

Os sete pecados capitais: ira

(Colleen Ranney: artista canadense)

 

A cólera que parte o homem em crianças

 

A cólera que parte o homem em crianças,

que parte a criança em pássaros iguais,

e o pássaro, depois, em ovos diminutos;

a cólera do pobre

tem um azeite contra dois vinagres.

 

A cólera que parte a árvore em folhas,

e a folha em botões desiguais

e o botão em ranhuras telescópicas;

a cólera do pobre

tem dois ricos contra muitos mares.

 

A cólera que parte o bem em dúvidas,

a dúvida em três arcos semelhantes

e o arco, depois, em campas imprevistas;

a cólera do pobre

tem um aço contra dois punhais.

 

A cólera que parte a alma em corpos,

o corpo em órgãos diferentes

e o órgão em oitavos pensamentos;

a cólera do pobre

tem um lago central contra duas crateras. (*)


26 Out. 1937

Em: “Poemas humanos” (1939)

 

Nota:

 

(*). A tradução do poema tem um lapso quando verte a palavra “fuego”, em espanhol, a “lago”, em português – quando o correto seria fogo –, lapso esse que reputo a um provável descuido na revisão.     

 

Referências:

 

Em Espanhol

 

VALLEJO, César. La cólera que quiebra al hombre en niños. In: __________. Obra poética completa. Edición, prólogo y cronología por Enrique Ballón Aguirre. Segunda reimpresión. Caracas, VE: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2015. p. 183. (“Biblioteca Ayacucho”; v. 58)

 

Em Português

 

VALLEJO, César. A cólera que parte o homem em crianças. Tradução de José Bento. In: VALLEJO, Cesar. Antologia. Selecção, tradução e prólogo de José Bento. Porto, PT: Limiar, 1981. p. 74. (Coleção “Os olhos e a memória”; v. 16)

sábado, 29 de novembro de 2025

Luiza Neto Jorge - A Magnólia

Pode-se interpretar este poema de Luiza Neto Jorge como uma celebração da linguagem enquanto sítio de criação e de transformação, ou por outra, não apenas um instrumento de comunicação, senão também um espaço onde as experiências convertem-se em significados – significados esses que, num lampejo, a poetisa logra vislumbrar nos interstícios de potenciais conexões entre o tangível e o inefável.

 

O mínimo e o magnificente emergem em pequenos milagres, entretecidos quer na natureza, quer na linguagem poética, pondo-se a deslizar e ressoar por toda parte. No plano de uma lauda em branco, a magnólia transfigura-se em sensorial e vívida imagética, pelo efeito de metáforas impactantes, lépidas em apreender o aroma e a beleza dessa flor.

 

J.A.R. – H.C.

 

Luiza Neto Jorge

(1939-1989)

 

A Magnólia

 

A exaltação do mínimo,

e o magnifico relâmpago

do acontecimento mestre

restituem-me a forma

o meu resplendor.

 

Um diminuto berço me recolhe

onde a palavra se elide

na matéria – na metáfora –

necessária, e leve, a cada um

onde se ecoa e resvala.

 

A magnólia,

o som que se desenvolve nela

quando pronunciada,

é um exaltado aroma

perdido na tempestade,

 

um mínimo ente magnífico

desfolhando relâmpagos

sobre mim.

 

Flores de Magnólia

(Myroslava Voloschuk: pintora ucraniana)

 

Referência:

 

JORGE, Luiza Neto. A magnólia. In: __________. 19 recantos e outros poemas. Organização de Jorge Fernandes da Silveira e Mauricio Dias. Rio de Janeiro, RJ: 7Letras, 2008. p. 62.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Mark Strand - A História da Poesia

Num mundo que, mais lenta ou rapidamente, muda de forma irreversível, tudo contribui para a desconexão entre o humano e o divino, tanto mais que, com o acirramento do processo de secularização, enredamo-nos num quotidiano estressante, no qual a beleza do entorno e os momentos particularmente inspirados não logram despertar verdadeiras epifanias ou disposição para agir – quer por não nos sobrar suficiente energia, quer por simples falta de vontade. Tornamo-nos, assim, observadores passivos, apáticos, sem apetite para vislumbrar significados ou propósitos em nossas existências.

 

E isso vale, em particular, para os poetas, agora um pouco desorientados nessa galáxia de desencantos, ainda que desilusões, desditas e adversidades sejam uma constante ao longo da história. Não é sem razão que a poesia, entre impasses e tribulações, segue sendo um meio de resistência contra o vazio, um recurso a empregar onde quer que haja beleza e sentidos por desvelar!

 

J.A.R. – H.C.

 

Mark Strand

(1934-2014)

 

The History of Poetry

 

Our masters are gone and if they returned

Who among us would hear them, who would know

The bodily sound of heaven or the heavenly sound

Of the body, endless and vanishing, that tuned

Our days before the wheeling stars

Were stripped of power? The answer is

None of us here. And what does it mean if we see

The moon-glazed mountains and the town with its silent doors

And water towers, and feel like raising our voices

Just a little, or sometimes during late autumn

When the evening flowers a moment over the western range

And we imagine angels rushing down the air’s cold steps

To wish us well, if we have lost our will,

And do nothing but doze, half hearing the sighs

Of this or that breeze drift aimlessly over the failed farms

And wasted gardens? These days when we waken,

Everything shines with the same blue light

That filled our sleep moments before,

So we do nothing but count the trees, the clouds,

The few birds left; then we decide that we shouldn’t

Be hard on ourselves, that the past was no better

Than now, for hasn’t the enemy always existed,

And wasn’t the church of the world always in ruins?

 

In: “The Continuous Life” (1990)

 

Uma manhã ensolarada

(Augusto Wall Callcott: pintor inglês)

 

A História da Poesia

 

Nossos mestres se foram e, se regressassem,

Quem de nós os escutaria, quem reconheceria

o corpóreo som do céu ou o celeste som

Do corpo, interminável e evanescente, que dava sintonia

Aos nossos dias antes que as estrelas orbitantes

Fossem destituídas de poder? A resposta é:

Nenhum dos aqui presentes. E qual o significado a deduzir

Se vemos as montanhas sob um lustro lunar e o povoado

com as suas silenciosas vias de acesso

E elevatórias de água, e sentirmos vontade de levantar um pouco

A voz? Ou se, vez por outra, durante o fim do outono,

Quando a noite se expande por um momento sobre a serrania

a oeste

E imaginamos anjos em descida pelos frios degraus do firmamento

Para nos desejar o melhor, tivermos perdido a vontade

E não fizermos mais do que dormitar, um tanto a ouvir os suspiros

De uma ou outra brisa vagueando sem rumo sobre as quintas falidas

E os devastados jardins? Hoje em dia, quando acordamos,

Tudo brilha com a mesma luz azul

Que nos cumulou o sono momentos antes.

Por isso não fazemos mais do que contar as árvores, as nuvens,

Os poucos pássaros que restam; depois decidimos que não há razão

Para sermos duros conosco mesmos, que o passado não foi melhor

Do que agora; afinal, porventura, o inimigo não existiu

desde sempre

E há muito o templo do mundo não se encontra em ruínas?

 

Em: “A Vida Contínua” (1990)

 

Referência:

 

STRAND, Mark. The history of poetry. In: __________. New selected poems. New York, NY: Alfred A. Knopf, 2007. p. 182.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Margaret Atwood - Ele é um estranho fenômeno biológico

A voz poética, num misto de chiste e desafio, descerra um acerbo comentário que se dirige ao parceiro masculino, a quem censura por haver perseguido incondicionalmente os valores da perfeição, racionalidade e eficiência impostos pelo progresso tecnológico, sem ponderar sobre as externalidades que provocam sobre a sua autenticidade, a sua conexão imediata à natureza e a sua própria humanidade.

 

Segundo a falante, essa criatura estranha e artificial, quase alienígena, com limitadas sensibilidade e intuição, apresenta certa desconexão entre a mente e o corpo, entre o pensamento e a ação: se, por um lado, mantém relações fragmentadas, utilitárias e desprovidas de profundidade emocional, por outro – como correlato inevitável! –, suas intervenções no mundo, submetidas à fria lógica quantitativa, ocorrem segundo parâmetros que desconsideram quaisquer ponderações que digam respeito ao equilíbrio do meio ambiente.

 

Ou por outra: um ser que, se funciona, está a anos-luz de qualquer programa que o leve a operar segundo critérios de otimização para o mundo natural! (rs)

 

J.A.R. – H.C.

 

Margaret Atwood

(n. 1939)

 

He is a strange biological phenomenon

 

Like eggs and snails you have a shell

 

You are widespread

and bad for the garden,

hard to eradicate

 

Scavenger, you feed

only on dead meat:

 

Your flesh by now

is pure protein,

smooth as gelatin

or the slick bellies of leeches

 

You are sinuous and without bones

Your tongue leaves tiny scars

the ashy texture of mildewed flowers

 

You thrive on smoke; you have

no chlorophyll; you move

from place to place like a disease

 

Like mushrooms you live in closets

and come out only at night.

 

You want to go back

to where the sky was inside us

 

animals ran through us, our hands

blessed and killed according to our

wisdom, death

made real blood come out

 

But face it, we have been

improved, our heads float

several inches above our necks

moored to us by

rubber tubes and filled with

clever bubbles,

 

our bodies

are populated with billions

of soft pink numbers

multiplying and analyzing

themselves, perfecting

their own demands, no trouble to anyone.

 

I love you by

sections and when you work.

 

Do you want to be illiterate?

This is the way it is, get used to it.

 

Lesmas na faia

(Alisa Munro: artista inglesa)

 

Ele é um estranho fenômeno biológico

 

Como ovos e caracóis você tem uma casca

 

Você é disperso

e mau para o jardim,

ruim de erradicar

 

Escaravelho, você se alimenta

somente de carniça:

 

Sua carne a esta altura

é pura proteína,

suave como gelatina

ou a barriga viscosa das lesmas

 

Você é sinuoso e sem ossos

Sua língua deixa pequenas cicatrizes

a textura cinzenta de flores mofadas

 

Você desabrocha na fumaça; você não tem

nenhuma clorofila; você se move

de um lugar a outro como uma doença

 

Como os cogumelos você vive em armários,

e só sai à noite.

 

Você quer voltar

para onde o céu estava dentro de nós

 

animais corriam entre nós, nossas mãos

abençoadas e matavam de acordo com a nossa

sabedoria, a morte

fez o verdadeiro sangue jorrar

 

Contudo encare, nós temos

melhorado, nossa cabeça flutua

vários centímetros acima de nosso pescoço

ancorado em nós por

tubos de borracha e cheio de

bolhas inteligentes,

 

nosso corpo

é povoado com bilhões

de números rosados macios

multiplicando e analisando

a si mesmo, aperfeiçoando

suas próprias necessidades, sem problemas para ninguém.

 

Eu amo você por

partes e quando você funciona.

 

Você quer ser analfabeto?

É assim que é, acostume-se com isso.

 

Referência:

 

ATWOOD, Margaret. He is a strange biological phenomenon / Ele é um estranho fenômeno biológico. Tradução de Stephanie Borges. In: __________. Políticas de poder: poemas. Introdução de Jan Zwicky. Tradução de Stephanie Borges. Edição bilíngue: inglês x português. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 2020. Em inglês: p. 32 e 34; em português: p. 33 e 35.