Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

João Miguel Queirós - Lianor

A partir do título atribuído por Queirós ao poema – Lianor –, com a mesma grafia empregada por Camões em “Descalça Vai Para a Fonte”, podem-se criar paralelos intertextuais entre os retratos por eles criados para a aludida figura feminina, naquilo que procuram capturar aspectos de vulnerabilidade e beleza, de tensão entre fragilidade e força, até mesmo de submissão a padrões sociais, embora em ambientes bastante distintos.

 

Enquanto Queirós nos oferece uma visão moderna e íntima, explorando um momento de introspecção e autocuidado no bulício da rotina urbana, dentro do recinto de um elevador, Camões celebra a idealização da beleza feminina na natureza e na tradição, construindo uma imagem deveras pictórica da mulher, “aureolada” por uma graça quase divina.

 

Distam, no entanto, os poemas quanto ao motivo da insegurança que se vê na musa: Camões o associa, contextualmente, ao fato de ela estar em um ambiente natural, ao passo que, em Queirós, a insegurança tem um perfil mais psicológico, talvez a refletir as preocupações e os anseios internos nela suscitados pelo frenesi do quotidiano contemporâneo.

 

Nota-se, desse modo, a conexão parafrástica entre os poemas de Queirós e de Camões, tal como se observa, semelhantemente, no âmbito da Literatura Brasileira, entre os poemas “Teresa”, de Manuel Bandeira, “O adeus de Teresa”, de Castro Alves, e “Teresa”, de Álvares de Azevedo.

 

J.A.R. – H.C.

 

João Miguel Queirós

(n. 1969)

 

Lianor

 

Hoje no elevador descobri o seu nome.

No cartão pessoal, que retirou com cuidado

para não soltar os fios da camisola de lã,

estava escrito à máquina Lianor.

 

Leonor no espelho do elevador vê pelo canto

do olho se está arranjada.

Ela sabe que por detrás da orelha já não tem

uma flor selvagem, e por isso

tem espaço para arrumar o seu cabelo com a mão,

como se o escondesse.

Repara nos seus dedos riscados pela esferográfica

que deixou arrumada

sobre a secretária. Está bonita na sua insegurança.

Leonor é agora tão verdadeira nessa impureza

frágil como

a água canalizada, que escondida na parede

do prédio

só é relembrada quando falta na torneira.

Leonor em vez de se colocar a meio do elevador

vazio prefere pôr-se

aconchegada a um canto, tal como faz à noite

antes de adormecer,

de modo a não sentir o resto da cama fria.

 

Relance de uma mulher no elevador

(Michael Birawer: artista norte-americano)

 

Referência:

 

QUEIRÓS, João Miguel. Lianor. In: FREITAS, M. (org.). Poetas sem qualidades. Lisboa, PT: Averno, 2002. p. 63.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

John Ashbery - Um Vaso com Flores

Neste curto poema, o poeta joga com as nossas expectativas de encontrar significado no quotidiano a partir de nossas habilidades perceptuais, confrontando-nos com a possibilidade de que, às vezes, as coisas restringem-se a ser o que simplesmente são – sem maiores transcendências ou perspectivas simbólicas –, a depender do contingente distanciamento que a elas impusermos.

 

Entre a objetividade descritiva e a carga emocional subjacente, o poema assume um tom quase antropomórfico em relação às flores no vaso, quando se lhes atribui propriedades deliberadas de tensão e de movimento, a par de sua misteriosa aura de intocabilidade: são elas a forma tangível por meio da qual Ashbery justapõe ideias de objetividade e de subjetividade, de atração e de repulsão, de firmeza e de instabilidade, tudo muito relacionado ao modo como as pessoas interpretam aquilo que apreendem pela via dos sentidos.

 

J.A.R. – H.C.

 

John Ashbery

(1927-2017)

 

A Vase of Flowers

 

The vase is white and would be a cylinder

If a cylinder were wider at the top than at the bottom.

The flowers are red, white and blue.

 

All contact with the flowers is forbidden.

 

The white flowers strain upward

Into a pallid air of their references,

Pushed slightly by the red and blue flowers.

 

If you were going to be jealous of the flowers,

Please forget it.

They mean absolutely nothing to me.

 

Um Vaso com Flores

(Margaretha Haverman: pintora holandesa)

 

Um Vaso com Flores

 

O vaso é branco e seria um cilindro

Se um cilindro fosse mais largo no topo do que na base.

As flores são vermelhas, brancas e azuis.

 

Todo o contato com as flores está proibido.

 

As flores brancas esticam-se para cima

A um pálido ar de suas referências,

Levemente impelidas pelas flores vermelhas e azuis.

 

Se te predispões a ficar com ciúmes das flores,

Por favor, esquece.

Elas não significam absolutamente nada para mim.

 

Referência:

 

ASHBERY, John. A vase of flowers. In: __________. Collected poems: 1956-1987. 1st print. New York, NY: Library of America, 2008. p. 924. (The Library of America; n. 187)

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Laura Riding - O mundo e eu

A falante sente-se confrangida ante os limites da linguagem, porque, sendo um dos nossos mais importantes meios de expressão, não logra captar tudo o que ela pretende dizer a cada instante: se uma palavra não consegue retratar com precisão, por exemplo, o que seja o sol, indaga-se ela, como poderá dar conta, de modo adequado, da sua experiência com ele?!

 

Riding sugere que seria melhor aceitar essa ausência parcial de coincidência entre a realidade empírica e a nossa experiência fenomenológica do mundo, essa quase certeza da distância e do desacordo entre o domínio da subjetividade e o da objetividade externa, do que tentar uma união que jamais alcançará o firmamento da plenitude, sendo preferível tal situação, seja como for, a uma total desconexão.

 

J.A.R. – H.C.

 

Laura Riding

(1901-1991)

 

The world and I

 

This is not exactly what I mean

Any more than the sun is the sun.

But how to mean more closely

If the sun shines but approximately?

What a world of awkwardness!

What hostile implements of sense!

Perhaps this is as close a meaning

As perhaps becomes such knowing.

Else I think the world and I

Must live together as strangers and die –

A sour love, each doubtful whether

Was ever a thing to love the other.

No, better for both to be nearly sure

Each of each – exactly where

Exactly I and exactly the world

Fail to meet by a moment, and a word.

 

Estudo de sol radiante com planetas

(Amy Lincoln: artista norte-americana)

 

O mundo e eu

 

Isto não é bem o que quero dizer, não,

Nada mais do que o sol é o sol.

Mas como significar mais corretamente

Se o sol brilha aproximadamente?

Que mundo mais desajeitado!

Que hostis implementos de sentido!

Talvez isto seja o sentido mais preciso

Que talvez fique bem o saber disso,

Ou então, acho que o mundo e eu, sim,

Devemos viver como estranhos até o fim –

Um amor azedo, ambos duvidando um pouco

Se um dia houve algo como amar o outro.

Não, melhor termos quase certeza

Cada um de nós onde é que exa-

tamente eu e exatamente o mundo falha

Em se cruzar por um segundo, e uma palavra.

 

Referência:

 

RIDING, Laura. Tradução de Rodrigo Garcia Lopes. In: __________. Mindscapes: poemas. Seleção, tradução e introdução de Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo, SP: Iluminuras, 2004. Em inglês: p. 160; em português: p. 161.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

António Ramos Rosa - Não posso adiar o amor para outro século

A necessidade de amar e de viver intensamente não admite dilações por parte do poeta: há suficiente urgência existencial por experimentar essa força vital e transformadora, capaz de romper os grilhões da opressão asfixiante e levar ao máximo o exercício da liberdade.

 

Rosa emprega a metáfora do abraço como uma “arma de dois gumes”, para deixar claro que o amor e o ódio acham-se entrelaçados, pois que a traduzir a expressão física de um afeto que, em simultâneo, pode simbolizar tanto a resistência quanto a unidade em tempos de adversidade.

 

Pospor indefinidamente tais experiências essenciais, aos olhos do sujeito lírico, seria uma forma de negar-se a si mesmo, fugindo dos compromissos do presente, de um quotidiano pejado de incertezas, mas que, de todo modo, é o único que se tem para dar voltas aos seus obstáculos, enquanto não se descortina uma alvorada mais clara.

 

J.A.R. – H.C.

 

António Ramos Rosa

(1924-2013)

 

Não posso adiar o amor para outro século

 

Não posso adiar o amor para outro século

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas

 

Não posso adiar este abraço

que é uma arma de dois gumes

amor e ódio

 

Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação

 

Não posso adiar o coração

 

O amor é liberdade

(Paresh Nrshinga: artista queniano)

 

Referência:

 

ROSA, António Ramos. Não posso adiar o amor para outro século. In: __________. A palavra e o lugar. Lisboa, PT: Dom Quixote, 1977. p. 19.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Chinua Achebe - Uma Mãe em um Campo de Refugiados

Achebe retrata uma cena comovente num campo de refugiados, certamente em algum lugar do continente africano, onde uma mãe luta para manter a sua ternura e dignidade em meio ao desespero e ao sofrimento, mantendo-se resiliente e amorosa em relação ao filho moribundo, mesmo em condições extremas – insalubres para se dizer o mínimo.

 

Persiste o amor maternal pelo filho – mesmo ciente de que são escassas as chances de ele sobreviver ao caos e à miséria que se disseminam no assentamento –, circunstância que, aos olhos do falante, se convola numa espécie de ritual pré-funerário pela criança cujas forças se exaurem gradualmente em seus braços.

 

Enfermidades, odores nauseabundos, desnutrição e condições higiênicas precárias, diga-se de passagem, configuram a mescla fatal que leva à morte milhões de pessoas ao redor deste mundo tão desigual, mundo que, a bem da verdade, despende bilhões de dólares para fomentar guerras intermináveis, gerando lucros incalculáveis para a indústria bélico-militar, mas que não tem olhares resolutos para erradicar da pobreza o enorme contingente humano assolado por tragédias desde logo contornáveis.

 

J.A.R. – H.C.

 

Chinua Achebe

(1930-2013)

 

A Mother in a Refugee Camp

 

No Madonna and Child could touch

Her tenderness for a son

She soon would have to forget...

The air was heavy with odors of diarrhea,

Of unwashed children with washed-out ribs

And dried-up bottoms waddling in labored steps

Behind blown-empty bellies. Other mothers there

Had long ceased to care, but not this one:

She held a ghost-smile between her teeth,

And in her eyes the memory

Of a mother’s pride... She had bathed him

And rubbed him down with bare palms.

She took from their bundle of possessions

A broken comb and combed

The rust-colored hair left on his skull

And then – humming in her eyes – began carefully

to part it.

In their former life this was perhaps

A little daily act of no consequence

Before his breakfast and school; now she did it

Like putting flowers on a tiny grave.

 

Momento de ternura

(Henry C. Porter: pintor norte-americano)

 

Uma Mãe em um Campo de Refugiados

 

Nenhuma Madona com o Menino poderia igualar

A ternura manifestada pelo filho

Que ela em breve teria que esquecer...

O ar estava pesado com odores de diarreia,

De crianças por lavar com costelas macilentas

E nádegas ressequidas, cambaleando a passos difíceis

Por trás de barrigas túrgidas e vazias. Outras mães ali

Há muito deixaram de se importar, mas não esta:

Ela mantinha um sorriso fantasmagórico entre os dentes,

E em seus olhos a memória

Do orgulho de uma mãe... Ela o banhara

E o massageara com as palmas desnudas.

Com um pente quebrado que retirou

De sua trouxa de pertences, ela penteou

Os cabelos cor de ferrugem que restavam em seu crânio

E então – com um cântico nos olhos – começou a parti-los

cuidadosamente.

Em sua vida anterior, isso talvez fosse

um pequeno ato diário sem consequências

antes do café da manhã e da escola; agora ela o fazia

como se colocasse flores em um pequeno túmulo.

 

Referência:

 

ACHEBE, Chinua. A mother in a refugee camp. In: __________. Collected poems. New York, NY: Anchor Books, aug. 2004. p. 16.