Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 20 de setembro de 2025

Yehuda Amichai - Poema temporário do meu tempo

Yehuda faz de seu poema uma meditação sobre a natureza humana, a história – especialmente à que diz respeito ao Oriente Médio – e o desejo de paz em meio ao conflito, o qual, diga-se de passagem, mantém-se aquecido naquela região até os presentes dias, sobretudo em razão da interminável contenda envolvendo a ocupação de terras palestinas por israelenses.

 

O poeta emprega a metáfora de pedras sendo lançadas a partir de diversos ângulos e por todos os grupos – semitas, antissemitas, justos, pecadores, gente de diferentes campos e crenças –, e não só, como também Deus e outras figuras bíblicas do mesmo modo retratadas.

 

Tais pedras – nunca intactas ou inocentes naquelas paragens – são dotadas de formas antropomórficas, como cabeças, bocas e olhos, ressoando com a dor e o sofrimento humano, num ciclo fútil e saturante de violência, perdendo de vista o respeito à diversidade das línguas e das culturas dos povos ali assentes.

 

O poema culmina com uma espécie de súplica pela paz, alicerçada na esperança de se encontrar pedras que jamais hajam sido utilizadas para fomentar e manter o conflito, apontando para um futuro em que, manifestamente, se tornem símbolos de construção e não de destruição.

 

J.A.R. – H.C.

 

Yehuda Amichai

(1924-2000)

 

Poema temporário do meu tempo

 

A escrita hebraica e a escrita arábica vão do leste

para o oeste,

A escrita latina, do oeste para o leste.

Línguas são como gatos:

Não se deve alisar o pelo em direção contrária.

As nuvens vêm do mar, o vento quente do deserto,

As árvores dobram-se ao vento,

E pedras voam dos quatro ventos

Aos quatro ventos. Eles jogam pedras,

Jogam esta terra, uns nos outros,

Mas a terra sempre cai de volta à terra.

Jogam a terra, querem livrar-se dela,

Suas pedras, seu solo, mas não podem se livrar dela.

Jogam pedras, jogam pedras em mim

Em 1936, 1938, 1948, 1988,

Semitas jogam em semitas e antissemitas

em antissemitas,

Homens maus jogam e justos jogam,

Pecadores jogam e tentadores jogam,

Geólogos jogam e teólogos jogam,

Arqueólogos jogam e arqui-hooligans jogam,

Rins jogam pedras e bexigas jogam,

Pedras-cabeça e pedras-fronte e o coração

de uma pedra,

Pedras em forma de boca aos gritos

E pedras que cabem nos olhos

Como um par de óculos,

O passado joga pedras no futuro,

E todas elas caem no presente.

Pedras que choram e pedras risonhas de cascalho,

Até́ Deus na Bíblia jogou pedras,

Até́ o Urim e o Tumim foram jogados,

E ficaram presos na couraça da justiça,

E Herodes jogou pedras e disso nasceu um Templo.

 

Oh, o poema da tristeza da pedra

Oh, o poema jogado nas pedras

Oh, o poema de pedras jogadas.

Haverá́ nesta terra

Uma pedra que nunca foi jogada

E nunca construída e nunca revirada

E nunca descoberta e nunca revelada

E nunca gritada de um muro e nunca descartada

pelos construtores

E nunca colocada sobre uma tumba e nunca deitada

sob dois amantes

E nunca transformada em pedra angular?

 

Por favor, não joguem mais pedras,

Vocês estão movendo a terra,

A terra sagrada, plena, aberta,

Vocês estão movendo a terra para o mar

E o mar não a quer

O mar diz: em mim, não.

 

Por favor, joguem pedras pequenas,

Joguem fósseis de caramujo, joguem cascalho,

Justiça ou injustiça das pedreiras de Migdal Tsedek,

Joguem pedras macias, joguem doces torrões,

Joguem limo, joguem lama,

Joguem areia da praia,

Joguem poeira do deserto, joguem crosta,

Joguem solo, joguem vento,

Joguem ar, joguem nada

Até́ que as mãos fiquem cansadas,

E a guerra fique cansada,

E mesmo a paz fique cansada e fique. 

(Poema traduzido ao português por Cide Piquet a partir da versão do hebraico para o inglês de Barbara e Benjamin Harshav, disponível neste endereço)


O canto sudoeste da Esplanada do Haram,

o Antigo Templo

(James J. J. Tissot: pintor francês)

 

Referência:

 

AMICHAI, Yehuda. Poema temporário do meu tempo. Tradução de Cide Piquer. In: MENDONÇA, Vanderley (Ed.). Lira argenta: poesia em tradução. Edição bilíngue. São Paulo, SP: Selo Demônio Negro, 2017. p. 255 e 257.

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