Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Abgar Renault - Perguntas ao crepúsculo/I

O sujeito lírico, por efeito de um estado contemplativo e melancólico, lança ao crepúsculo – esse estado liminar entre o dia e a noite – uma série de interrogantes existenciais e metafísicas, pondo em questão elementos tanto do entorno, do cosmos até, quanto de sua própria interioridade, a espelhar a humana angústia diante dos mistérios insondáveis da existência.

 

Com efeito, é o sobre o sentido da vida – e sobre o que acontece após a morte – que se debruça o falante: as cartas escritas às estrelas, a garrafa de vinho sem ser bebida, a concha marinha cheia de sonhos são metáforas que expressam o desejo humano de transcender a finitude e encontrar significados para esta realidade de que todos fazemos parte.

 

Veja-se que o emprego da imagem de números arcaicos e cifras duvidosas inseridas em exercícios já concluídos parece aludir a uma busca infrutífera por equilíbrio e por tais significados, no exato instante em que, desventuradamente, a silhueta de Átropos, aos poucos – mas de modo irreversível –, vai ganhando contornos cada vez mais definidos na linha do horizonte.

 

J.A.R. – H.C.

 

Abgar Renault

(1901-1995)

 

Perguntas ao crepúsculo/I

 

Mas por que tamanho azul?

Por que parado em silêncio

esse automóvel sem cor?

Quem veio, quem voltará?

Por que também esta grama

e tantos passos ausentes?

Por que escrevo cartas velhas,

nova letra, verde tinta,

desesperadamente,

à estrela Alfa ou Gama,

que, clara, tão clara, pinta

de surdo luto e segredo

o raio de lua e sol?

Por que hoje uma fita escura

a marcar página em branco

neste livro em minha mesa?

E uma garrafa de vinho

– púrpura, vívido e bêbedo –

por que na frente de mim,

sem mãos, sem lábios, sem copo?

Por que nos olhos, no ouvido,

sem o possessivo minha

a curva concha marinha

cheia de mim e sonatas

de Mozart – frágeis, mas sempre?

Por que não ser sequestrado

pela resposta à pergunta

sepultada em meu peito?

Por que, para que ser feliz,

por que, para que não o ser?

Por que contabilizar

arcaicos números mortos,

buscando débito e crédito,

e procurar receber

escassos, dúbios cifrões

há tanto tempo caídos

em exercícios já findos?

 

Março, 1975

 

Velho à hora do crepúsculo

(Salvador Dalí: pintor espanhol)

 

Referência:

 

RENAULT, Abgar. Perguntas ao crepúsculo/I. In: __________. Obra poética. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1990. p. 206.

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