O sujeito lírico, por
efeito de um estado contemplativo e melancólico, lança ao crepúsculo – esse
estado liminar entre o dia e a noite – uma série de interrogantes existenciais
e metafísicas, pondo em questão elementos tanto do entorno, do cosmos até, quanto
de sua própria interioridade, a espelhar a humana angústia diante dos mistérios
insondáveis da existência.
Com efeito, é o sobre
o sentido da vida – e sobre o que acontece após a morte – que se debruça o falante:
as cartas escritas às estrelas, a garrafa de vinho sem ser bebida, a concha
marinha cheia de sonhos são metáforas que expressam o desejo humano de
transcender a finitude e encontrar significados para esta realidade de que
todos fazemos parte.
Veja-se que o emprego
da imagem de números arcaicos e cifras duvidosas inseridas em exercícios já
concluídos parece aludir a uma busca infrutífera por equilíbrio e por tais significados,
no exato instante em que, desventuradamente, a silhueta de Átropos, aos poucos –
mas de modo irreversível –, vai ganhando contornos cada vez mais definidos na
linha do horizonte.
J.A.R. – H.C.
Abgar Renault
(1901-1995)
Perguntas ao
crepúsculo/I
Mas por que tamanho
azul?
Por que parado em
silêncio
esse automóvel sem
cor?
Quem veio, quem voltará?
Por que também esta
grama
e tantos passos
ausentes?
Por que escrevo
cartas velhas,
nova letra, verde
tinta,
desesperadamente,
à estrela Alfa ou
Gama,
que, clara, tão
clara, pinta
de surdo luto e
segredo
o raio de lua e sol?
Por que hoje uma fita
escura
a marcar página em
branco
neste livro em minha
mesa?
E uma garrafa de
vinho
– púrpura, vívido e
bêbedo –
por que na frente de
mim,
sem mãos, sem lábios,
sem copo?
Por que nos olhos, no
ouvido,
sem o possessivo minha
a curva concha
marinha
cheia de mim e
sonatas
de Mozart – frágeis,
mas sempre?
Por que não ser sequestrado
pela resposta à
pergunta
sepultada em meu
peito?
Por que, para que ser
feliz,
por que, para que não
o ser?
Por que contabilizar
arcaicos números
mortos,
buscando débito e crédito,
e procurar receber
escassos, dúbios
cifrões
há tanto tempo caídos
em exercícios já
findos?
Março, 1975
Velho à hora do
crepúsculo
(Salvador Dalí:
pintor espanhol)
Referência:
RENAULT, Abgar. Perguntas
ao crepúsculo/I. In: __________. Obra poética. Rio de Janeiro, RJ:
Record, 1990. p. 206.
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