Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 14 de setembro de 2025

Carlos Drummond de Andrade - Vida menor

Incluído na seção “Tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” da obra em referência, este poema de matiz existencial diz muito sobre a busca do falante pelo essencial que há no ser, num descarte de artifícios e ornamentos que descansam na superficialidade daquilo que se apreende por humano, tal que, ao fim e ao cabo, somente remanesça uma forma de vida mínima, porém autêntica.

 

Esse despojamento completo do meramente acessório, de indiferença ao supérfluo, de desapego aos valores materiais, sucederia a par com a elisão do tempo, vale dizer, com o propósito de se transcender as limitações e divisões impostas pela concepção comum que dele se tem – seccionado em passado, presente e futuro –, para que não mais haja sujeição às inquietações por ele infligidas.

 

Os versos sugerem ainda um certo distanciamento do ente lírico em relação aos elementos da realidade social convencional, o que decerto denota a tendência de se afastar dos elementos culturais, intelectuais e estéticos que caracterizam a vida social: “vida menor”, vida mínima, vida essencial, vida serena, vida silenciosa, vida de retiro!

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

Vida menor

 

A fuga do real,

ainda mais longe a fuga do feérico,

mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,

a fuga da fuga, o exílio

sem água e palavra, a perda

voluntária de amor e memória,

o eco

já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,

a mão tornando-se enorme e desaparecendo

desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,

senão inúteis,

a desnecessidade do canto, a limpeza

da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.

Não a morte, contudo.

 

Mas a vida: captada em sua forma irredutível,

já sem ornato ou comentário melódico,

vida a que aspiramos como paz no cansaço

(não a morte),

vida mínima, essencial; um início; um sono;

menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;

o que se possa desejar de menos cruel: vida

em que o ar, não respirado, mas me envolva;

nenhum gasto de tecidos; ausência deles;

confusão entre manhã e tarde, já sem dor,

porque o tempo não mais se divide em seções; o tempo

elidido, domado.

Não o morto nem o eterno ou o divino,

apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente

e solitário vivo.

Isso eu procuro.

 

Em: “A Rosa do Povo” (1945)

 

De volta à vida

(Casey Tan: artista singapurense)

 

Referência:

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. Vida menor. In: __________. Antologia poética. Organizada pelo autor. 48. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. p. 318-319.

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