Incluído na seção “Tentativa
de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” da obra em referência, este
poema de matiz existencial diz muito sobre a busca do falante pelo essencial
que há no ser, num descarte de artifícios e ornamentos que descansam na
superficialidade daquilo que se apreende por humano, tal que, ao fim e ao cabo,
somente remanesça uma forma de vida mínima, porém autêntica.
Esse despojamento
completo do meramente acessório, de indiferença ao supérfluo, de desapego aos
valores materiais, sucederia a par com a elisão do tempo, vale dizer, com o
propósito de se transcender as limitações e divisões impostas pela concepção
comum que dele se tem – seccionado em passado, presente e futuro –, para que
não mais haja sujeição às inquietações por ele infligidas.
Os versos sugerem
ainda um certo distanciamento do ente lírico em relação aos elementos da
realidade social convencional, o que decerto denota a tendência de se afastar
dos elementos culturais, intelectuais e estéticos que caracterizam a vida
social: “vida menor”, vida mínima, vida essencial, vida serena, vida
silenciosa, vida de retiro!
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
Vida menor
A fuga do real,
ainda mais longe a
fuga do feérico,
mais longe de tudo, a
fuga de si mesmo,
a fuga da fuga, o
exílio
sem água e palavra, a
perda
voluntária de amor e
memória,
o eco
já não correspondendo
ao apelo, e este fundindo-se,
a mão tornando-se
enorme e desaparecendo
desfigurada, todos os
gestos afinal impossíveis,
senão inúteis,
a desnecessidade do
canto, a limpeza
da cor, nem braço a
mover-se nem unha crescendo.
Não a morte, contudo.
Mas a vida: captada
em sua forma irredutível,
já sem ornato ou
comentário melódico,
vida a que aspiramos
como paz no cansaço
(não a morte),
vida mínima,
essencial; um início; um sono;
menos que terra, sem
calor; sem ciência nem ironia;
o que se possa
desejar de menos cruel: vida
em que o ar, não
respirado, mas me envolva;
nenhum gasto de
tecidos; ausência deles;
confusão entre manhã
e tarde, já sem dor,
porque o tempo não
mais se divide em seções; o tempo
elidido, domado.
Não o morto nem o
eterno ou o divino,
apenas o vivo, o
pequenino, calado, indiferente
e solitário vivo.
Isso eu procuro.
Em: “A Rosa do Povo”
(1945)
De volta à vida
(Casey Tan: artista
singapurense)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Vida menor. In: __________. Antologia poética. Organizada pelo autor. 48. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. p. 318-319.
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