O autor gaúcho lança
mão de toda a sua ironia e humor para nos narrar uma historieta de um peregrino
– nomeadamente o falante – que, juntamente a outros, caminhava (em sua conjecturável
jornada espiritual) acompanhado por um santo milagroso: a voz poética, com seu
tom desencantado e questionador, nos convida, deveras, a refletir sobre a
natureza do sagrado e do milagroso em um mundo aparentemente arbitrário, senão
absurdo.
O contraste entre a
futilidade do santo, que a todo instante realizava milagres, e a insignificância
do peregrino que se intitula um “nada”, incapaz de realizar qualquer feito
extraordinário, cria uma atmosfera que se poderia dizer crítica – ou seria
melhor dizer cética? – em relação à banalização ou a superficialidade dessas intervenções
divinas.
Talvez Quintana pretendesse
nos revelar os seus desenganos no que diz respeito à religiosidade
institucionalizada, que valoriza os santos e os eventos milagrosos em
detrimento de uma fé pessoal mais autêntica, orientada pela busca de um sentido
mais profundo para o divino, seus mistérios, seus desígnios...
J.A.R. – H.C.
Mario Quintana
(1906-1994)
O Peregrino
Malcontente
Íamos de caminhada. O
santo e eu.
Naquele tempo
dizia-se: íamos de longada...
E isso explicava
tudo, porque longa, longa era a viagem...
Íamos, pois, o santo,
eu e outros.
Ele era um santo tão
fútil que vivia fazendo milagres.
Eu, nada...
Ele ressuscitou uma
flor murcha e uma criança morta
E transformou uma
pedra, na beira da estrada,
Em flor-de-lótus.
(Por que
flor-de-lótus?)
Um dia chegamos ao
fim da peregrinação.
Deus, então,
Resolveu mostrar que
também sabia fazer milagres:
O santo desapareceu!
Mas como? Não sei!
desapareceu, bem ali, diante
dos nossos olhos que
a terra já comeu!
E nós nos prostramos
por terra e adoramos
ao Senhor Deus
todo-poderoso
E foi-nos concedida a
vida eterna: isto!
Deus é assim.
O peregrino
(Ilia Efimovitch
Repin: pintor russo-ucraniano)
Referência:
QUINTANA, Mario. O
peregrino malcontente. In: __________. Nariz de vidro. Ilustrações de
Rogério Borges. 3. ed. São Paulo, SP: Editora Moderna, 2020. p. 46-47.
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