Com versos livres e
estrutura segmentada, este poema nos fala das dinâmicas opostas representadas
pela aparente universalidade, imutabilidade e insignificância do tempo e pela busca
persistente de um propósito ou razão que justifique a existência humana, para
além das trivialidades quotidianas ou mesmo de desalentadoras hipóteses
teóricas que tomam este mundo como expressão do mais puro absurdo.
Salvado reforça a
ideia de que o tempo é de uma linearidade inexorável que conduz todos os seres
à solidão, a uma angústia existencial. Insertos nessa mônada temporal, à medida
que nos aproximamos da morte, despojamo-nos das vaidades, aspirando por clareza
acerca do que ainda está por vir, ainda que muitas vezes toldada por
expectativas ilusórias.
Mas o poeta nos
revela a sua esperança de que, num futuro distante, sob as luzes de uma
perspectiva mais ampla, a nossa existência possa adquirir um significado a
respeito do qual por ora não atinamos, transcendendo os limites de nossa hesitante
e precária compreensão sobre o que, à primeira vista, nos parece sem-sentido, tal
que se convole toda a dúvida em um oportuno vislumbre sobre os motivos
determinantes de aqui estarmos.
J.A.R. – H.C.
António Salvado
(1936-2023)
A Razão Indefinida
Longe ou perto, em
qualquer lugar, o tempo
é sempre o mesmo:
continuamente vazio
de importância...
O tempo é sempre
igual:
descida ao ponto
máximo da solidão.
Mas, ah! No cansaço
de aproximarmos a morte,
de ficarmos despidos
de todas as vaidades,
no impossível sonho
da claridade exigida –
aí surge o absurdo,
os tentáculos cruéis,
a falsa limpidez da
expectativa...
Porém, um dia
longínquo, indiferente ao tempo,
nós seremos talvez o
barro de algum a ideia,
o sopro surpreendente
de que nem tudo foi inútil,
de que existia uma
razão definida, uma razão clara!
Em: “Cicatriz” (1965)
A passagem do tempo
(Sushe Felix: artista
norte-americana)
Referência:
SALVADO, Antônio. A
razão indefinida. In: __________. Obra I: 1955-1975. Coimbra, PT: A Mar
Arte, 1997. p. 121.
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