Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Millôr Fernandes - Ode ao psicanalista

Eis uma crítica ao mesmo tempo irreverente e mordaz ao psicanalista e à sua prática clínica: Millôr retrata-o como um cientista social que, à maneira dos biólogos, disseca e cataloga sistemática e meticulosamente os mais insuspeitados latíbulos da alma, predicando-os e etiquetando-os, sem compreender realmente a essência e a totalidade do ser humano.

 

A fragmentação excessiva da subjetividade, a vã racionalização teórica à procura de tudo explicar ou pôr em causa, são rotinas que acabam por perder de vista a própria pessoa, com suas contradições, sua singularidade.

 

Ainda que conheça todos os segredos, os profundos recessos da psique, cada sentimento e emoção – as paixões, as angústias, os sonhos e os remorsos –, sabendo perfeitamente explicar as razões do riso e do suicídio, o psicanalista, na visão do poeta, jamais logra compreender a integralidade dos processos que nela pululam.

 

Se tal é o diagnóstico correto, o que lhe falta? Qual o corretivo necessário no tratamento dos pacientes para que as medidas sanadoras sejam de real eficácia?

 

Pelo que se deduz da modulação dos versos, talvez o olhar para o outro como um ser humano único e irrepetível, lançando mão de meios mais compreensivos e individualizados na prática psicanalítica: menos esquadrinhamento, mais escuta; mais empatia, menos técnica; mais humanização, menos objetificação.

 

J.A.R. – H.C.

 

Millôr Fernandes

(1923-2012)

 

Ode ao psicanalista

 

Desmembra a alma em pedaços

Rotula todas as partes

Ego, id, dor, anseio

Arquiva peça por peça

Ciúmes, recalques, medo

Conhece todo segredo

Dos corações em desgraça

Tabela paixão e angústia

Computa sonho e remorso

Pinça e mede sentimentos

E sabe explicar por que

Eu rio do meu desastre

E você pensa em suicídio

Só perdendo o dente siso.

Com o consciente sabido

Desce mais fundo e além

Vai batizando a alma

Com os nomes que a alma tem.

E com o inconsciente explica

O brilho de qualquer bossa

O horror de qualquer fossa.

As perversões sexuais

Para ele são normais:

E sabe todo o trançado

Dos fatores sociais.

Seu tirocínio é perfeito

Seu raciocínio, bacano.

Tem apenas um defeito:

Nunca viu um ser humano.

 

25/11/1970

 

Paisagem

(Cadavre Exquis: Valentine Hugo,

André Breton, Tristan Tzara, Greta Knutson)

 

Referência:

 

FERNANDES, Millôr. Ode ao psicanalista. In: __________. Essa cara não me é estranha e outros poemas. 1. ed. São Paulo, SP: Boa Companhia, 2014. p. 168-169.

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