Eis uma crítica ao
mesmo tempo irreverente e mordaz ao psicanalista e à sua prática clínica:
Millôr retrata-o como um cientista social que, à maneira dos biólogos, disseca e cataloga sistemática e meticulosamente os mais insuspeitados latíbulos da
alma, predicando-os e etiquetando-os, sem compreender realmente a essência e
a totalidade do ser humano.
A fragmentação excessiva
da subjetividade, a vã racionalização teórica à procura de tudo explicar ou pôr
em causa, são rotinas que acabam por perder de vista a própria pessoa, com suas contradições,
sua singularidade.
Ainda que conheça todos
os segredos, os profundos recessos da psique, cada sentimento e emoção – as
paixões, as angústias, os sonhos e os remorsos –, sabendo perfeitamente
explicar as razões do riso e do suicídio, o psicanalista, na visão do poeta, jamais
logra compreender a integralidade dos processos que nela pululam.
Se tal é o diagnóstico
correto, o que lhe falta? Qual o corretivo necessário no tratamento dos
pacientes para que as medidas sanadoras sejam de real eficácia?
Pelo que se deduz da
modulação dos versos, talvez o olhar para o outro como um ser humano único e
irrepetível, lançando mão de meios mais compreensivos e individualizados na
prática psicanalítica: menos esquadrinhamento, mais escuta; mais empatia, menos
técnica; mais humanização, menos objetificação.
J.A.R. – H.C.
Millôr Fernandes
(1923-2012)
Ode ao psicanalista
Desmembra a alma em
pedaços
Rotula todas as
partes
Ego, id, dor, anseio
Arquiva peça por peça
Ciúmes, recalques,
medo
Conhece todo segredo
Dos corações em
desgraça
Tabela paixão e
angústia
Computa sonho e
remorso
Pinça e mede
sentimentos
E sabe explicar por
que
Eu rio do meu
desastre
E você pensa em
suicídio
Só perdendo o dente
siso.
Com o consciente
sabido
Desce mais fundo e
além
Vai batizando a alma
Com os nomes que a
alma tem.
E com o inconsciente
explica
O brilho de qualquer
bossa
O horror de qualquer
fossa.
As perversões sexuais
Para ele são normais:
E sabe todo o
trançado
Dos fatores sociais.
Seu tirocínio é
perfeito
Seu raciocínio,
bacano.
Tem apenas um
defeito:
Nunca viu um ser
humano.
25/11/1970
Paisagem
(Cadavre Exquis: Valentine Hugo,
André Breton, Tristan Tzara, Greta Knutson)
Referência:
FERNANDES, Millôr.
Ode ao psicanalista. In: __________. Essa cara não me é estranha e outros
poemas. 1. ed. São Paulo, SP: Boa Companhia, 2014. p. 168-169.
❁


Nenhum comentário:
Postar um comentário