Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Józef Baran - Canção sobre o tempo

O sujeito lírico compara o mundo a uma pipa solta voando fora de controle, desenfreadamente, e expressa a frustração de não poder aproveitar plenamente o momento presente: a frescura da juventude, o brilho da primavera e o êxtase de cada instante desvanecem-se num piscar d’olhos ante o contemporâneo modo acelerado de ser viver.

 

Há uma sensação de vertigem e de angústia diante dessa pressa, dessa impossibilidade de se deter os momentos fugazes de beleza para desfrutá-los, imortalizando-os na memória: o falante suplica a uma força superior para que intervenha e controle a passagem do tempo, para que possa deduzir algum sentido mais estável no curso desta sua aventura espiritual.

 

J.A.R. – H.C.

 

Józef Baran

(n. 1947)

 

Piosenka o czasie

 

Świat się zerwał jak latawiec z uwięzi

i przed siebie jak szalony gdzieś pędzi

Powiedz życie gdzie się śpieszysz

że nam chwilą nie pozwalasz się nacieszyć

Powiedz świecie gdzie tak mkniesz

i co czynić by spowolnić planet pęd

 

Boże wstrzymaj na chwilę czas

co poszóstną karetą gna jakby los wypuścił lejce z rąk

z tego pędu cierpnie skóra

Panie wstrzymaj na chwilę czas i zachowaj

młodości smak

wiosny blask

i pozwól w zachwycie trwać

 

Może w górze ktoś przyśpieszył zegary

poprzestawiał wskazówki i miary

Powiedz życie gdzie się śpieszysz

że nam chwilą nie pozwalasz się nacieszyć

Powiedz świecie gdzie tak mkniesz

Że powstrzymać cię nie mogą łzy ani śmiech

 

Boże wstrzymaj na chwilę czas

co poszóstną karetą gna jakby los wypuścił lejce z rąk

z tego pędu cierpnie skóra

Panie wstrzymaj na chwilę czas i zachowaj

młodości smak

wiosny blask

i pozwól w zachwycie trwać

 

Puro Êxtase

(María del Mar G. César: pintora espanhola)

 

Canção sobre o tempo

 

O mundo soltou-se que nem o papagaio

e foge Deus sabe onde

vida, vida, por que tanta pressa

atropela os instantes de alegria

diga ó mundo para onde você vai

como os planetas podem desacelerar

 

Parai o tempo um pouco, ó Senhor,

ele numa carruagem sem destino sem rédeas corre

com a velocidade de arrepiar

parai o tempo um pouco e nos dai

sentir o gosto da juventude

a luz da primavera

e que a vida em êxtase continue

 

Alguém deve ter apressado os relógios lá em cima

trocado os ponteiros e as medidas

vida, vida por que tanta pressa

atropela os instantes de alegria

diga ó mundo para onde você vai

que nem o riso nem as lágrimas te podem parar

 

Parai o tempo um pouco, ó Senhor,

ele numa carruagem sem destino sem rédeas corre

com a velocidade de arrepiar

parai o tempo um pouco e nos dai

sentir o gosto da juventude

a luz da primavera

e que a vida em êxtase continue

 

Referência:

 

BARAN, Józef. Piosenka o czasie / Canção sobre o tempo. Tradução de Henryk Siewierski. Poesia sempre. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de janeiro (RJ), ano 17, n. 35, 2010. Em polonês: p. 90; em português: p. 91.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Marly de Oliveira - On demande comment

A voz poética se questiona como algo aparentemente “tão pouco necessário ao mundo” como a poesia pode ter um lugar suficientemente sólido e fundamentado entre as artes e na construção mesma da linguagem: sugere a falante que, sem a poesia, as palavras e sua capacidade de designar e nomear as coisas se desvaneceriam, deixando-nos incapazes de apreender e compreender o mundo que nos rodeia, pela perda progressiva de seus significados.

 

A poesia, por certo, com o seu poder ao mesmo tempo evocativo e delimitador, a desafiar os sentidos em sincronia com o intelecto, é ferramenta de construção de realidades, não mero ornamento dispensável atrelado a um sentido utilitário ou prático: ao erigir uma galáxia simbólica, ela nos convida a uma experiência estética e cognitiva multímoda, plena de pasmos e de insuspeitadas conexões.

 

J.A.R. – H.C.

 

Marly de Oliveira

(1935-2007)

 

On demande comment (*)

 

a poesia, tão pouco necessária ao mundo,

tenha parte tão sólida entre as artes,

tenha parte tão sólida

na construção da linguagem;

sem ela, uma caixa vazia,

uma caixa com fendas de onde

escapasse qualquer coisa, mesmo a água,

de onde escapasse cada letra e depois a palavra

que designa esta imagem da caixa

e assim por diante até que se ficasse

olhando o chão sem dar nome à semente,

a ferramenta de uma construção

que pode ser, quem sabe, o teto

de uma casa um castelo um poema,

desafiando todos os sentidos,

remetendo ao intelecto.

 

A transeunte

(Félix Vallotton: pintor suíço)

 

Nota:

 

(*). “On demande comment”: “Perguntamo-nos como”, em francês; como se observa, o título do poema se integra ao próprio poema, à maneira de um verso, dando continuidade aos questionamentos nele suscitados.

 

Referência:

 

OLIVEIRA, Marly de. On demande comment. In: __________. Antologia poética. Organização e prefácio por João Cabral de Melo Neto. 1. ed., 2. reimp. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1997. p. 236.

domingo, 28 de setembro de 2025

Edwin Morgan - Um cigarro

O poeta escocês emprega uma dicção fluida e evocativa para capturar a complexidade das emoções humanas diante da ausência e da memória persistente do amor, no caso, depois da partida da amada do sujeito lírico, envolto em nostalgias e melancolias após dela separar-se.

 

O cigarro aceso no cinzeiro, emitindo um fio de fumaça gris a conduzir o olor do tabaco às narinas do falante, ganha assim contornos de uma celebração íntima e etérea por um amor que, seja como for, tem lá as suas forças remanentes, a despeito de que estas, gradualmente, tendam a se desvanecer, à medida que a perda assume ares de conformidade.

 

J.A.R. – H.C.

 

Edwin Morgan

(1920-2010)

 

One cigarette

 

No smoke without you, my fire.

After you left,

your cigarette glowed on in my ashtray

and sent up a long thread of such quiet grey

I smiled to wonder who would believe its signal

of so much love. One cigarette

in the non-smoker’s tray.

As the last spire

trembles up, a sudden draught

blows it winding into my face.

It is smell, is it taste

You are here again, and I am drunk on your

tobacco lips.

Out with the light.

Let the smoke lie back in the dark.

Till I hear the very ash

sigh down among the flowers of brass

I’ll breathe, and long past midnight, your last kiss.

 

O prazer de fumar

(Jean Gouweloos: artista belga)

 

Um cigarro

 

Não há fumaça sem você, meu fogo.

Quando você partiu,

seu cigarro brilhou no meu cinzeiro

e enviou uma linha de um cinza tão ordeiro

sorri imaginando quem iria acreditar no sinal

de tanto amor. Um cigarro

no cinzeiro de não-fumante.

Enquanto a última espiral

estremece, uma brisa súbita

sopra seu caracol no meu rosto.

É o cheiro, é o gosto?

Você está aqui, e bêbado outra vez nos lábios

de tabaco me vejo.

Apague a luz.

Deixe a fumaça deitar no escuro.

Até eu escutar a mesma cinza

suspirar entre as flores de bronze

que respirarei, e muito depois da meia-noite,

seu último beijo.

 

Referência:

 

MORGAN, Edwin. One cigarette / Um cigarro. Tradução de Virna Teixeira. In: TEIXEIRA, Virna (Organização, tradução e notas). Ovelha negra: uma antologia de poesia da Escócia do século XX. São Paulo, SP: Lumme Editor, 2007. Em inglês: p. 32; em português: p. 33.

sábado, 27 de setembro de 2025

Mario Quintana - O peregrino malcontente

O autor gaúcho lança mão de toda a sua ironia e humor para nos narrar uma historieta de um peregrino – nomeadamente o falante – que, juntamente a outros, caminhava (em sua conjecturável jornada espiritual) acompanhado por um santo milagroso: a voz poética, com seu tom desencantado e questionador, nos convida, deveras, a refletir sobre a natureza do sagrado e do milagroso em um mundo aparentemente arbitrário, senão absurdo.

 

O contraste entre a futilidade do santo, que a todo instante realizava milagres, e a insignificância do peregrino que se intitula um “nada”, incapaz de realizar qualquer feito extraordinário, cria uma atmosfera que se poderia dizer crítica – ou seria melhor dizer cética? – em relação à banalização ou a superficialidade dessas intervenções divinas.

 

Talvez Quintana pretendesse nos revelar os seus desenganos no que diz respeito à religiosidade institucionalizada, que valoriza os santos e os eventos milagrosos em detrimento de uma fé pessoal mais autêntica, orientada pela busca de um sentido mais profundo para o divino, seus mistérios, seus desígnios...

 

J.A.R. – H.C.


Mario Quintana

(1906-1994)

 

O Peregrino Malcontente

 

Íamos de caminhada. O santo e eu.

Naquele tempo dizia-se: íamos de longada...

E isso explicava tudo, porque longa, longa era a viagem...

Íamos, pois, o santo, eu e outros.

Ele era um santo tão fútil que vivia fazendo milagres.

Eu, nada...

Ele ressuscitou uma flor murcha e uma criança morta

E transformou uma pedra, na beira da estrada,

Em flor-de-lótus.

(Por que flor-de-lótus?)

Um dia chegamos ao fim da peregrinação.

Deus, então,

Resolveu mostrar que também sabia fazer milagres:

O santo desapareceu!

Mas como? Não sei! desapareceu, bem ali, diante

dos nossos olhos que a terra já comeu!

E nós nos prostramos por terra e adoramos

ao Senhor Deus todo-poderoso

E foi-nos concedida a vida eterna: isto!

Deus é assim.

 

O peregrino

(Ilia Efimovitch Repin: pintor russo-ucraniano)

 

Referência:

 

QUINTANA, Mario. O peregrino malcontente. In: __________. Nariz de vidro. Ilustrações de Rogério Borges. 3. ed. São Paulo, SP: Editora Moderna, 2020. p. 46-47.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Mary Karr - Falácia Patética

Em torno da dor de se perder um ente querido – no caso em questão, a genitora da falante –, estes versos expressam um desejo de se manter conexão com aqueles que se foram, pois que a morte não representaria, necessariamente, o rompimento completo do convívio, senão apenas uma espécie de variante na forma de relacionamento.

 

A menção à obra “A Náusea”, do filósofo Sartre (1905-1980), tem forte conexão com o tema do poema, uma vez que, em suas páginas, o protagonista Roquentin expressa semelhante sensação de angústia existencial, num mundo de contingências em que, cada qual, acha-se livre para atribuir sentidos à sua própria existência.

 

Há que se enfrentar o vazio essencial, a aparente falta de motivos para que as coisas sejam como são – quase um fardo quotidiano. E o modo como a poetisa se desembaraça de tal encargo é mantendo vivas as memórias da mãe, marcantes a ponto de induzir-lhe a sensação de sua presença a cada instante, insuflando-lhe ânimo para continuar na lida de sua transformação interior.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mary Karr

(n. 1955)

 

Pathetic Fallacy

 

When it became impossible to speak to you

due to your having died and been incinerated,

I sometimes held the uncradled phone

 

with its neat digits and arcane symbols (crosshatch,

black star) as if embedded in it

were some code I could punch in

 

to reach you. You bequeathed me

this morbid bent, Mother.

Who gives her sixth-grade daughter

 

Sartre’s Nausea to read? All my life,

I watched you face the void,

leaning into it as a child with a black balloon

 

will bury her countenance

either to hide from

or to merge with that darkness.

 

Small wonder that still

in the invisible scrim of air

that delineates our separate worlds,

 

your features sometimes press toward me

all silvery from the afterlife, woven in wind,

to whisper a caution. Or your hand on my back

 

shoves me into my life.

 

Mãe e filha

(Lubna Al-Lahham: artista jordaniana)

 

Falácia Patética

 

Quando se tornou impossível falar contigo

devido ao fato de teres morrido e sido incinerada,

por vezes, segurava o telefone fora da base

 

com os seus dígitos legíveis e símbolos arcanos (cerquilha,

estrela negra) como se nele estivesse embutido

um código que eu pudesse digitar

 

para te contactar. Legaste-me

esta inclinação mórbida, Mãe.

Quem dá a ler à sua filha da sexta série

 

o livro A Náusea, do Sartre? Durante toda a minha vida,

vi-te encarar o vazio, a ele

inclinando-te feito uma criança com um balão negro

 

a encobrir-lhe o semblante

ou bem para se esconder

ou bem para se fundir com esse negror.

 

Não é de admirar que, ainda

na invisível cortina de ar

que delimita os nossos mundos separados,

 

as tuas feições por vezes se aproximem de mim,

todas prateadas pela vida pós-morte, tecidas ao vento,

para sussurrar-me um aviso. Ou as tuas mãos às minhas costas

 

se firmem para impelir-me ao interior da minha vida.

 

Referência:

 

KARR, Mary. Pathetic fallacy. In: __________. Sinners welcome: poems. New York, NY: HarperCollins Publishers Inc., sept. 2007. p. 1. (“HarperCollins e-books”)