Empregando a mesma
ideia daqueles “livros de horas” que trazem as orações mais comuns e os salmos penitenciais
a serem lidos pelos fiéis em determinados momentos do dia, o falante discorre, contrito,
sobre as facetas dúplices que lhe habitam – encontradiças, ademais, em qualquer
ser humano: a liberdade em face da responsabilidade, a maldade a desafiar a bondade,
a escuridão a refrear as eclosões de luz, a animalidade à espreita de suas mais sublimes ações.
Somos essa
complexidade que acaba por externalizar toda a luta entre partes contraditórias
que carregamos no íntimo, tornando ainda mais incerta a viagem que empreendemos
na vida, como uma “nau à deriva”: aceitarmo-nos plenamente, com honestidade e
intrepidez, reconhecendo o enredamento moral e espiritual a que estamos sujeitados
– o qual, a depender das circunstâncias, pode ensejar ações e emoções bastante
distintas, das impulsivas e destrutivas às mais serenas e compassivas –, é bem
o modo que, aquilatando judiciosamente todas as moedas que vão dar nos pratos
da balança, poderá nos levar, mais cedo ou mais tarde, à plenitude pessoal, à
sensatez e à cordura.
J.A.R. – H.C.
Miguel Torga
(1907-1995)
Livro de horas
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me
confesso
De ser assim como
sou.
Me confesso o bom e o
mau
Que vão ao leme da
nau
Nesta deriva em que
vou.
Me confesso
Possesso
Das virtudes
teologais, (1)
Que são três,
E dos pecados
mortais, (2)
Que são sete,
Quando a terra não
repete
Que são mais.
Me confesso
O dono das minhas
horas.
O das facadas cegas e
raivosas
E o das ternuras lúcidas
e mansas.
E de ser de qualquer
modo
Andanças
Do mesmo todo.
Me confesso de ser
charco
E luar de charco, à
mistura.
De ser a corda do
arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha
altura.
Me confesso de ser
tudo
Que possa nascer em
mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e
de Caim.
Me confesso de ser
Homem.
De ser anjo caído
Do tal céu que Deus
governa;
De ser um monstro
saído
Do buraco mais fundo
da caverna.
Me confesso de ser
eu.
Eu, tal e qual como
vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
Jovem em Oração Lendo
um Livro de Horas
(Ambrosius Benson:
pintor italiano)
Notas:
(1). Fé, esperança e caridade.
(2). Ira, luxúria, avareza, gula, soberba, preguiça e inveja.
Referência:
TORGA, Miguel. Livro de horas. In: __________. Antologia poética. 4. ed. Coimbra, PT: Ed. do Autor, 1984. p. 55-56.
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