Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 15 de março de 2025

Miguel Torga - Livro de horas

Empregando a mesma ideia daqueles “livros de horas” que trazem as orações mais comuns e os salmos penitenciais a serem lidos pelos fiéis em determinados momentos do dia, o falante discorre, contrito, sobre as facetas dúplices que lhe habitam – encontradiças, ademais, em qualquer ser humano: a liberdade em face da responsabilidade, a maldade a desafiar a bondade, a escuridão a refrear as eclosões de luz, a animalidade à espreita de suas mais sublimes ações.

 

Somos essa complexidade que acaba por externalizar toda a luta entre partes contraditórias que carregamos no íntimo, tornando ainda mais incerta a viagem que empreendemos na vida, como uma “nau à deriva”: aceitarmo-nos plenamente, com honestidade e intrepidez, reconhecendo o enredamento moral e espiritual a que estamos sujeitados – o qual, a depender das circunstâncias, pode ensejar ações e emoções bastante distintas, das impulsivas e destrutivas às mais serenas e compassivas –, é bem o modo que, aquilatando judiciosamente todas as moedas que vão dar nos pratos da balança, poderá nos levar, mais cedo ou mais tarde, à plenitude pessoal, à sensatez e à cordura.

 

J.A.R. – H.C.

 

Miguel Torga

(1907-1995)

 

Livro de horas

 

Aqui, diante de mim,

Eu, pecador, me confesso

De ser assim como sou.

Me confesso o bom e o mau

Que vão ao leme da nau

Nesta deriva em que vou.

 

Me confesso

Possesso

Das virtudes teologais, (1)

Que são três,

E dos pecados mortais, (2)

Que são sete,

Quando a terra não repete

Que são mais.

 

Me confesso

O dono das minhas horas.

O das facadas cegas e raivosas

E o das ternuras lúcidas e mansas.

E de ser de qualquer modo

Andanças

Do mesmo todo.

 

Me confesso de ser charco

E luar de charco, à mistura.

De ser a corda do arco

Que atira setas acima

E abaixo da minha altura.

 

Me confesso de ser tudo

Que possa nascer em mim.

De ter raízes no chão

Desta minha condição.

Me confesso de Abel e de Caim.

 

Me confesso de ser Homem.

De ser anjo caído

Do tal céu que Deus governa;

De ser um monstro saído

Do buraco mais fundo da caverna.

 

Me confesso de ser eu.

Eu, tal e qual como vim

Para dizer que sou eu

Aqui, diante de mim!

 

Jovem em Oração Lendo um Livro de Horas

(Ambrosius Benson: pintor italiano)

 

Notas:

 

(1). Fé, esperança e caridade.

(2). Ira, luxúria, avareza, gula, soberba, preguiça e inveja.

 

Referência:

 

TORGA, Miguel. Livro de horas. In: __________. Antologia poética. 4. ed. Coimbra, PT: Ed. do Autor, 1984. p. 55-56.

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