Centrado no crebo
tema do entorno natural, tão recorrente na poesia chinesa clássica, pode-se interpretar
este poema de Wei, mais extensivamente, como uma metáfora para o sofrimento
humano, com o calor abrasador e o desejo de partir para um lugar fresco e vazio
a simbolizarem, respectivamente, as dificuldades e desafios que costumeiramente
enfrentamos no quotidiano, bem assim a busca pela paz interior, para libertar-nos
daquilo que nos suplicia.
Entre o taoísmo e o
budismo, os versos finais refletem o despertar da mente para a natureza
aflitiva de nossos corpos, razão por que deveríamos nos dedicar a sondar as
formas conscienciais supremas dos seres ditos iluminados, hábeis a nos levar
até o “Portão do Orvalho Suave” – algo como o limiar do Nirvana, para além de
qualquer apego doentio aos nossos frágeis sentidos carnais.
J.A.R. – H.C.
Wang Wei
(692 d.C - 761 d.C.)
苦熱
赤日滿天地
火雲成山嶽
草木盡焦卷
川澤皆竭涸
輕紈覺衣重
密樹苦陰薄
莞簟不可近
絺綌再三濯
思出宇宙外
曠然在寥廓
長風萬里來
江海蕩煩濁
卻顧身爲患
始知心未覺
忽入甘露門
宛然清涼樂
Verão indiano
(Józef Chełmoński: pintor polonês)
Sofrendo de calor
Um sol em brasa, no
céu, na terra,
nuvens de fogo
envolvendo as montanhas.
Calcinadas as ervas,
murchas as árvores,
secos os rios,
enxutos os pântanos.
Como pesa, no corpo,
a mais leve de todas as sedas!
As árvores frondosas
quase não dão sombra,
ninguém pode
descansar em esteiras de vime,
a roupa de linho
lavada três vezes ao dia.
Bom seria partir para
um mundo longínquo
e livre, habitar num
imenso vazio,
deixando-me acariciar
por ventos e brisas,
rios e mares
expurgando angústias, impurezas.
O nosso corpo, sempre
uma fonte de cuidados (*),
por isso, melhor
deixar o coração adormecer.
Depois, franquear o Portão do Orvalho Suave
e alcançar
serenamente a alegria, a frescura.
Nota do Tradutor:
(*). Alusão ao Dao
Dejing, cap. 13, de Laozi. “Sou infeliz porque tenho corpo. Se, ausência de
corpo, nenhuma infelicidade”.
Referência:
WEI, Wang. 苦熱 / Sofrendo de calor. Tradução de António
Graça de Abreu. In: __________. Poemas de Wang Wei. Tradução, prefácio e
notas de António Graça de Abreu. Macau, CN: Instituto Cultural de Macau, 1993. Em
chinês: p. 124; em português: p. 125. (Colecção ‘Clássicos Chineses’; v. 3)
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