Mais que mera imagem
física, um espelho dentro de um armário é a metáfora perfeita para a poetisa,
suscitando uma atmosfera sugestiva e enigmática de elementos contrastantes – como
a luz e a escuridão ou a presença e a ausência –, ocupar-se de um espaço íntimo
e privado, a refletir a sua mirada introspectiva acerca do que parece
configurar certa vacuidade no viver, entretecida por nébulas de retraimento e
solidão.
Ao sair do quarto,
deixando a porta do armário aberta ou fechada, configuram-se as mediações
graduadas de exposição da falante perante o mundo, ali a arriscar-se pela
vulneração de sua intimidade, e aqui a comedir-se pelo resguardo de seus hiatos,
de seus intermúndios, por trás de uma pretensa fachada de segurança – o que concorre
para a sobredita sensação de reclusão.
J.A.R. – H.C.
Ana Martins Marques
(n. 1977)
Espelho
Dentro do armário
do seu quarto de
dormir
deve haver um
espelho.
Se você sai
e deixa o armário
aberto
durante todo o dia
o espelho reflete
um pedaço da sua cama
desfeita.
Se você sai
e deixa a porta
fechada
durante todo o dia
o espelho reflete o
escuro
do seu armário de
roupas,
a luz contida dos
vidros
de perfume.
Do outro lado do
poema
não há nada.
O quarto do castelo
do fantasma do espelho
(Enrico Pelos: artista
italiano)
Referência:
MARQUES, Ana Martins. Espelho. In: JARDIM, Rubens (Pesquisa, seleção e organização). As mulheres poetas na literatura brasileira. v. 3. São Paulo, SP: Edição do Autor, 2018. p. 46.
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