Leio o poema de Capinan
e logo me vem à mente a máxima de Ortega y Gasset (1883-1955), inserta na “Meditação
Preliminar”, em “Meditações do Quixote”: “Eu sou eu e minha circunstância, e se
não a salvo tampouco me salvo.” (1914, p. 43-44). E mais à frente: “O homem tem
uma missão de clareza sobre a terra.” (1914, p. 123).
Há na realidade à
volta do ser humano a potencialidade de mudança, de melhoria de sua condição de
vida mediante um impulso direcionado à ação sobre as circunstâncias que o
delimitam: a inação e a omissão não são opções capazes de o levar a uma melhor
compreensão de si mesmo!
Daí a inflexão a um “tenho
que” nos versos finais do poema, caracterizando essa relação obrigacional de
atuar, de arquitetar propósitos, de projetar “aríetes” capazes de romper as
barreiras que nos causam asfixia: somente assim materializamos nossas
intenções, reabsorvendo nossas circunstâncias.
J.A.R. – H.C.
José Carlos Capinan
(n. 1941)
Poema Intencional
Há em cada substância
a sua negativa
e a possibilidade de
processo
processo inexorável a
ir ao fim
meta a ser de pão e
flores
e a rosa será uma
outra rosa
e nós já não seremos
vejo nos olhos
tristes de maria
um filho possível
vejo na árvore antiga
do parque
uma cadeira, uma
muleta, mas sobretudo um aríete
descubro na boca angustiada
o hino pronto e pesado
é inevitável o
acontecimento
mas procuro ser um
elemento
carrego em mim a
utilidade
sei que posso dar
existência
e na minha total
renúncia
utilizo-me para um
bem maior
tenho que colher a
rosa
e transformá-la
tenho que possuir
maria
e dar-lhe um filho
tenho que transformar
a árvore do parque
em cadeira, em
muleta, mas sobretudo em aríete.
Trabalhadores
(Di Cavalcanti: pintor
carioca)
Referência:
CAPINAN, José Carlos.
Poema intencional. Em: FELIX, Moacyr (Org.). Violão de rua: poemas para
a liberdade. Vol. II. Rio de Janeiro, GB: Civilização Brasileira, nov. 1962. p.
84-85. (‘Cadernos do Povo Brasileiro’; Volume Extra)
ORTEGA Y GASSET,
José. Meditaciones del Quijote: meditación preliminar & meditación
primera. Madrid, ES: Publicaciones de la Residencia de Estudiantes, 1914. (Serie
II; Vol. I)
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