Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Astrid Cabral - A sombra

A sombra da falante é esse espelhamento cego e silencioso que atua no teatro deste mundo com um disfarce das linhas do rosto de onde moldada, convertendo-lhe o corpo em uma “casa mal-assombrada”, vulto que, sem vida autônoma, dói na mesma “dor” e freme no mesmo “orgasmo” ressumados em “tronco, membros e órgãos sob a pele”.

 

Sem quaisquer graus de liberdade, age a sombra a replicar gestos, sem suspeitar dos sentimentos e pensamentos que os justificam, pois que limitada à exterioridade das curvas de quem as projeta pelo efeito da luz. Mas quantas outras sombras pervagam insuspeitas pela mente, universo inconsciente como um imprevisível vulcão, ávido por lançar seus magmas, lavas sobre a derme do quotidiano?!

 

J.A.R. – H.C.

 

Astrid Cabral

(n. 1936)

 

A sombra

 

De manhã levanta-se com minha preguiça,

deita-se à noite com o meu cansaço.

Dói na minha dor, freme no meu orgasmo.

Faz do meu corpo casa mal-assombrada.

De qualquer sol ou luz liberta,

é capaz de vingar no regaço da treva

e zombar de quem quiser guerreá-la.

Cega e surda me ronda e me fareja

sem a meus pés deitar-se em alfombra

nem feito cão lamber-me os rastros.

É uma sombra que sempre me aprisiona

não em transparente e frouxa redoma,

antes em incômoda estreita roupa

que rente e rasante me reveste

tronco, membros e órgãos sob a pele.

É uma sombra que sob a superfície jaz

invisível aos lados, à frente, atrás.

É uma sombra contida no meu espaço

escondida do aço dos espelhos

sob o disfarce da minha face.

 

Em: “Ponto de cruz” (1979)

 

Diva das sombras

(Françoise Michalopoulou: artista grega)

 

Referência:

 

CABRAL, Astrid. A sombra. In: HENRIQUES NETO, Afonso (Seleção e Prefácio). Roteiro da poesia brasileira: anos 70. 1. ed. São Paulo, SP: Global, 2009. p. 59. (Coleção ‘Roteiro da poesia brasileira’)

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