A sombra da falante é
esse espelhamento cego e silencioso que atua no teatro deste mundo com um disfarce
das linhas do rosto de onde moldada, convertendo-lhe o corpo em uma “casa
mal-assombrada”, vulto que, sem vida autônoma, dói na mesma “dor” e freme no
mesmo “orgasmo” ressumados em “tronco, membros e órgãos sob a pele”.
Sem quaisquer graus
de liberdade, age a sombra a replicar gestos, sem suspeitar dos sentimentos e
pensamentos que os justificam, pois que limitada à exterioridade das curvas de
quem as projeta pelo efeito da luz. Mas quantas outras sombras pervagam
insuspeitas pela mente, universo inconsciente como um imprevisível vulcão, ávido
por lançar seus magmas, lavas sobre a derme do quotidiano?!
J.A.R. – H.C.
Astrid Cabral
(n. 1936)
A sombra
De manhã levanta-se
com minha preguiça,
deita-se à noite com
o meu cansaço.
Dói na minha dor, freme
no meu orgasmo.
Faz do meu corpo casa
mal-assombrada.
De qualquer sol ou
luz liberta,
é capaz de vingar no
regaço da treva
e zombar de quem
quiser guerreá-la.
Cega e surda me ronda
e me fareja
sem a meus pés
deitar-se em alfombra
nem feito cão
lamber-me os rastros.
É uma sombra que
sempre me aprisiona
não em transparente e
frouxa redoma,
antes em incômoda
estreita roupa
que rente e rasante
me reveste
tronco, membros e
órgãos sob a pele.
É uma sombra que sob
a superfície jaz
invisível aos lados,
à frente, atrás.
É uma sombra contida
no meu espaço
escondida do aço dos
espelhos
sob o disfarce da
minha face.
Em: “Ponto de cruz”
(1979)
Diva das sombras
(Françoise
Michalopoulou: artista grega)
Referência:
CABRAL, Astrid. A
sombra. In: HENRIQUES NETO, Afonso (Seleção e Prefácio). Roteiro da poesia
brasileira: anos 70. 1. ed. São Paulo, SP: Global, 2009. p. 59. (Coleção
‘Roteiro da poesia brasileira’)
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